Capa do Papo Lendário 206 - Bizarrices nas Mitologias

Papo Lendário #206 – Bizarrices nas Mitologias

Nesse episódio do Papo Lendário, Leonardo Mitocôndria, Nilda Alcarinquë e Andriolli Costa conversam sobre a bizarrices nas mitologias.

Veja alguns deuses de domínios um tanto quanto inusitados.

Ouça sobre alguns youkais bem equisitos.

Conheça a deusa dos esgostos.

Entenda o motivo de muitos mitos parecerem estranhos para nossa atual cultura, e que isso diz muito sobre a nossa própria cultura.

– Esse episódio possui transcrição, veja mais abaixo.

— LINKS —

Colecionador de Sacis (site do convidado Andriolli Costa)

— EQUIPE —

Pauta, edição: Leonardo Mitôcondria
Locução da abertura: Ira Croft
Host: Leonardo Mitôcondria
Participante: Nilda Alcarinquë
Convidado: Andriolli Costa

— APOIE o Mitografias —

Catarse

Apoia-se

— Agradecimentos aos Apoiadores —

Antunes Thiago
Paulo Diovani Gonçalves
Patricia Ussyk
Edmilson Zeferino da Silva
Rafa Mello
Jonathan Souza de Oliveira
Pedro Zavitoski
Clecius Alexandre Duran
Gabriele Tschá
Felipe Cavalcante da Rocha
Everson
Mateus Seenem Tavares
Domenica Mendes
Ana Lúcia Merege Correia
Yasmin patricia de oliveira
Mayra
Bruno Gouvea Santos
Aline Aparecida Matias
Alexandre Iombriller Chagas
Leonardo Rocha da Silva
Lindonil Rodrigues dos Reis
José Eduardo de Oliveira Silva
Alan Franco
Eder Cardoso Santana
Rosenilda Azevedo
Adriano Gomes Carreira
Talita Kelly Martinez
Ricardo Silva
Leila Pereira Minetto

icone do rss icone do apple podcast icone do spotify icone do castbox icone do podcast republic icone do podcast addict icone do podbean icone do Google Podcast

— Transcrição realizada por Amanda Barreiro (@manda_barreiro)

[00:00:00]

[Vinheta de abertura]: Você está ouvindo Papo Lendário, o podcast de mitologias do projeto Mitografias. Quer conhecer sobre mitos, lendas, folclore e muito mais? Acesse: mitografias.com.br.

[Trilha sonora]

Leonardo: Muito bem, ouvintes. E no episódio de hoje a gente vai falar aí sobre bizarrices nas mitologias, nas diversas mitologias, porque realmente a gente está acostumado aí com mitologia, mas muita gente de fora, ou às vezes até nós mesmos, quando vai pesquisando aí encontra cada coisa muito esquisita, aquelas coisas que você lê, aí você para e “Não, espera aí. Eu entendi direito? Deixa eu ver de novo se é isso”. E aí você tenta entender realmente o que está acontecendo ali naquela narrativa, naquele mito, aquelas divindades estranhas. Então coisa estranha na mitologia é o que não falta, então tem muita coisa para se falar. A gente vai dar alguns exemplos, mas a gente vai conversar sobre o porquê são estranhos, e vai conversar sobre isso aí. E, para isso, eu chamei um convidado que já participou aí várias vezes, você já o conhece bem, mas é o Andriolli, para a gente conversar aí sobre essas bizarrices nas mitologias.

Andriolli Costa: Fala, pessoal. Eu sou Andriolli Costa, sou jornalista e editor do site O Colecionador de Sacis, onde eu apresento o meu podcast, o Poranduba – quem não conhece, por favor, chega lá -, e também agora o meu canal do Youtube, do Colecionador de Sacis. Eu estou apresentando o Folclore Todo Dia. Vamos ver até quando eu aguento, porque é trabalho, mas todo dia tem uma indicação de obra folclórica lá para vocês. Então tem muito conteúdo por aí.

Leonardo: Bom, e também aqui da equipe a Nilda para ajudar a gente a conversar aí sobre o tema.

Nilda: Olá, pessoal.

Leonardo: Bom, inicialmente, eu pensei nessa pauta para ser algo mais descontraído, algo simples, que a gente só ia falar de alguns mitos que a gente achava estranhos, só que, conforme eu fui pesquisando, eu fui vendo alguns elementos, eu fui vendo alguns padrões também, eu fui refletindo sobre o que realmente é estranho nos mitos e o porquê são estranhos, por que a gente acha estranhos. E, de certa forma, deu até uma dificuldade. Quando eu pensei: “Ah, vou pensar em mitos estranhos, em divindades bizarras”, até lancei um questionamento faz um tempinho aí no Twitter para o pessoal indicar alguns, alguns que indicaram vão estar aqui na lista, mas eu achei que ia ser simples: pega ali algo estranho e tudo e põe. Só que aí eu fui pensando como eu vou definir o que realmente é algo estranho ou não na mitologia, e aí eu vi que muita coisa ali teria um quê meio pessoal – claro que eu acho que você, ouvinte, nos exemplos que a gente der, vai também achar estranhos, mas muita coisa das quais eu acho que já estou acostumado a ver em algumas narrativas, em algumas mitologias, eram comum e, para muita gente, aquilo lá seria estranho.

Andriolli Costa: Acho que muito daquilo que faz com que a gente ache os mitos, quando a gente vai vê-los na sua forma mais… é difícil falar mais pura, mas essa forma menos literária, por assim dizer, é porque a gente está acostumado a ver esses mitos limpinhos. Quando eles vão para o cinema, quando eles vão para um livro de fantasia, o autor pega aquilo que é confuso, aquilo que é absurdo, e corta, então ele deixa aquilo muito mais coerente para o que a gente está acostumado. E aí, quando você pega uma obra que você parece que conhece tanto, por exemplo, mitologia grega, que a gente, desde a infância, é exposto, e, quando começa a ouvir sobre como as pessoas relatavam esses contos na oralidade, você fala assim: “Não, mas esse não é o meu mito, não é assim que eu conhecia”. Se você está acostumado a ver o Hércules ali pelos 12 trabalhos da Disney, você sabe que tem muito de Hércules ali que não está sendo capturado pela narrativa midiática.

Leonardo: Principalmente quando em muita coisa você encontra até um quê infantilizado, e aí realmente o pessoal pega para alterar, para fazer essa limpeza, digamos assim, entre aspas, mas realmente. E aí as pessoas, o público em geral não vai ter contato com aquele quê mais estranho, mais pesado muitas vezes.

Nilda: Eu acho que é como um pouco também do que fizeram com os contos de fadas. Se você pega os europeus, eles eram extremamente assustadores; aí você foi depurando. Uma das irmãs adotivas da Cinderela cortaria o seu próprio pé para poder caber no sapatinho, e isso foi expurgado e, hoje em dia, pouca gente – a não ser que seja um estudioso – sabe disso, está lá na história. A gente só meio que limpou, realmente limpou, fez uma coisa que… eu não sei até que ponto é boa, mas fizemos isso.

Leonardo: Independentemente se isso seria bom ou não, de qualquer maneira a gente não pode perder os mais puros, digamos assim – não gosto de dizer mais puros, mas essas versões mais antigas. A gente tem acho que tomar muito cuidado para não as perder, tentar manter.

Andriolli Costa: A Nilda puxou aí sobre contos de fadas. É bem interessante quando você começa a olhar esses contos chamados contos maravilhosos, porque a gente que tem essa cabeça de cinema, quadrinho, busca visualizar as coisas todas com as referências que a gente tem, só que o conto popular nunca teve isso. Então, por exemplo, tem coisas ali que, com dificuldade, você visualiza. Eu lembro da obra do Vladimir Propp sobre a Morfologia dos Contos Maravilhosos, que ele vai listando ali alguns dos contos mais famosos na Rússia, e tinha padrões que eram tipo assim: o herói, o príncipe, sei lá, estava fugindo do vilão, e aí ele põe a mão do bolso e ele tira do bolso um feijão, sei lá, uma semente, e ele joga no chão. E, dessa semente, cria-se um rio do nada, assim. E aí ele entra no rio e ele já não está mais naquele terreno que ele estava, ele já está no mundo submarino, subaquático. Por quê? Porque essas histórias muitas vezes também vão sendo acrescidas de outras, então é muito comum que uma história de um príncipe que esteja fugindo na terra se misture com a do príncipe que estava fugindo na água, e aí vira um conto gigante que emenda uma coisa na outra. E, para quem estava ouvindo, é diversão da mesma forma. Agora, para a gente fica: “Nossa, o que está acontecendo?”.

Leonardo: E outra coisa aí que o que me fez ter uma certa dificuldade: como eu falei, alguns aqui da lista vão ser algo bem pessoal, que eu vi ali e achei estranho, mas, como eu já estou estudando mitologia há muito tempo, tem coisa que eu já estou acostumado, e aí, tipo assim, por exemplo: a gente pega na Bíblia, a gente tem cenas de uma cobra falante, pessoas que nascem do barro. São coisas assim. Você pode até falar: “Não é tão bizarro”, mas muitas vezes pode não ser tão estranho porque já está acostumado com isso, mas aí, quando você pega algo que você… a primeira vez que você vê algum mito, algo mais diferente ali, aí sim você vai achar estranho. Como já tem muitos mitos que eu já estou acostumado, para mim é comum. Um outro exemplo aí: na mitologia nórdica, sempre quando vão falar do Loki, falam do famoso episódio de onde ele teve um filho cavalo. Ele se transformou em uma égua e com isso teve um filho. O Sleipnir, cavalo do Odin, é filho dele. Esse conto, essa narrativa, eu já ouvi umas 300 mil vezes, então para mim, tipo, ok, já estou acostumado com isso aí, tanto que eu nem pus na pauta, mas muita gente eu vejo que: “Nossa, mas como assim? Que bizarro”, assim e tudo. Sim, é estranho, mas eu já estou acostumado com essa narrativa. Então isso vai algo muito pessoal do quão próximo você já está daquela narrativa ou não.

Andriolli Costa: E é muito fácil também o contrário, quando você falou sobre a naturalização da mitologia cristã. A gente, como naturalizou isso, tende a tentar aplicar esses padrões nos outros, então é: “Temos aqui um dilúvio também na mitologia da Mesopotâmia, então é o mesmo dilúvio”, só que não, cada dilúvio está significando coisas diferentes ali. Não é a mesma coisa. Da mesma maneira que tem algumas versões de mitos de origem guarani que falam sobre o homem surgindo do barro; desse barro, depois, é moldada uma panela onde nasce a mulher. Eu acho bem questionável, porque, quando eu olho assim, me parece muito mais que o relator daquele conto, imbuído de uma lógica cristã, aplicou aquilo ao que ele ouviu dos indígenas. Isso aconteceu muito, por exemplo, para quem já me acompanha, sabe do mito do Jurupari. O Jurupari lá, que foi transformado em um demônio cristão, tudo mais, mesmo se você pega o que seria a versão original dele, que foi narrada pelo Ermanno Stradelli, o Stradelli depois descobre que ele aplicou uma lógica literária cristã no relato que foi narrado para ele diretamente do nheengatu, então o professor que comparou o nheengatu com o italiano viu que ele acrescentou um monte de coisas ali que fazem muito mais sentido se você tem aquele fundo da Bíblia do que qualquer outra coisa, então por isso fica o Jurupari nessa versão muito solarizado, praticamente um Jesus, que vai trazer a mensagem divina para a Terra. Então é complicado isso.

Leonardo: É, isso é comum acontecer em várias outras culturas que tiveram esse contato com a parte cristã, e, nossa, isso dá um trabalho para o pessoal que estuda, que vai muito a fundo mesmo, porque aí vê aquilo lá: olha, tem isso aqui, mas tem a ideia de que isso pode ter sido posto por causa do autor, que teve contato, então fez isso que o Andriolli falou. E aí, qual é verdade ou não? Qual é o original? Será que era original mesmo ou não? Fica essa dúvida. Alguns ficam mais claros, na cara, mas fica sempre aquela pulga atrás da orelha: e aquele outro conto? Aquele lá também pode ter sido influenciado. Isso aí atrapalha muito a pesquisa.

Andriolli Costa: Sejam críticos com as fontes, gente, duvidem. É sempre importante.

Leonardo: Nessa ideia de mitos, contos estranhos, a gente tem que também pensar que muitas vezes ele tem ali um certo exagero, o próprio mito em si, e não é falando mal que ele tem um exagero, mas ele é, porque ele não está ali necessariamente para ser um relato de um fato, de algo histórico. Principalmente para nós agora, que estamos até fora da cultura em si, mas o mito é muito mais para passar uma mensagem, um conceito, uma validação, muitas vezes a origem dos locais e tudo assim, é mais nisso do que simplesmente um documentário em si. Então é como ele vai ter aquele exagero, é normal que tenha algo assim, de mostrar algo descomunal, algo grandioso e tudo, porque é o papel ali do mito. Só que, se a gente for pegar aquilo lá para… não sei dizer se isso seria algo mais atual, um costume mais atual ou não de querer que coloque tudo ao pé da letra, mas não pode ser. Tem que entender que aquilo lá está querendo passar um conceito.

Andriolli Costa: Uma coisa que me irrita demais, porque às vezes, se a pessoa está fazendo de brincadeira, isso é uma brincadeira idiota, imbecil, mas paciência; agora, tem vezes que as pessoas compartilham isso a sério, que é aquele negócio de “Segundo a Bíblia, esses são irmãos”, aí é o ser humano e um tijolo, porque os dois foram feitos de barro. Gente, eu tenho certeza que, se você é capaz de entender o que significa algo ser feito de barro pensando como aquilo é maleável, moldável, que significa a terra, a água da vida, enfim. Não sejam literais, porque a literaridade é estúpida.

Nilda: Não, e aí a pessoa faz isso querendo criticar: “Não, porque a religião dominante é cristã, vamos criticar os cristãos”. Na mitologia yorubá também tem uma versão que a humanidade veio do barro, então eu acabei de ofender os yorubás também no mesmo post.

Leonardo: Eu acho que tem que tomar cuidado tanto na parte de quem está de fora ali querendo fazer essa crítica, que teoricamente não precisaria, quanto também quem está de dentro. Não adianta você pôr algum elemento ali, defender aquilo como literal. Eu acho que nem quem está dentro, nem quem está fora compensaria defender aquilo de forma literal. Eu acho… o ideal é você entender o contexto daquele conto, daquela narrativa, entender por que foi escrito daquela forma, que muitas vezes para atualmente não tem mais muito sentido, de repente pode, algo assim, perder o sentido por ser outra cultura em si. Eu acho que tanto como crítica, como defesa.

Andriolli Costa: A gente tem a tendência de pensar que os povos antigos eram idiotas. Inclusive, os próprios gregos, falam: “Ah, como eles acreditavam nisso? Meu deus do céu”, mas, olha só, gente, pensa só, os filósofos pré-socráticos – vocês provavelmente já ouviram falar que cada um deles pensava ali que um dos elementos, um dos quatro elementos, era o fundamental para a vida. Então o fogo, a terra, água e o ar. Quando eles falavam isso, por exemplo, Parmênides, quando essas pessoas falavam isso, elas não estavam falando assim, o fogo ipsis litteris, o fogo que eu estou vendo aqui na minha frente, o fogo que queima quando eu toco; ela está pensando nas propriedades do fogo, então é a energia que movimenta a vida, que movimenta o meu corpo, que mantém aquecido. Quando o corpo morre, o corpo esfria; quando o corpo está vivo, ele está quente. É essa nossa literaridade que faz com que a gente olhe para o passado ou mesmo para relatos aqui que são mais carregados de subjetividade e os ache absurdos, sendo que, se você tentar extrapolar um pouquinho, a gente consegue chegar lá.

Leonardo: É tentar entender o porquê de estar falando aquilo naquele momento, naquela situação, entendeu? Por que não trazer… por isso que eu falo, eu não sei se essa literaridade é algo da nossa época aqui, recente, ou não, não sei, mas é, pelo menos dessa forma, um olhar daqui para outra cultura, muitas vezes para o passado em si. E falando, assim, de outras culturas, esse olhar que a gente teria sobre outras culturas, muitas vezes é isso mesmo que também vai tornar algo estranho por ser realmente outra cultura, algo diferente, outros valores. Então uma outra cultura vai dar ênfase a determinados elementos ali da cultura dela, o que ela acha mais importante em si, alguns tabus. Tanto que eu vejo que, muito do que eu fui encontrando, que eu achava meio estranho ou imaginava que muita gente iria achar algo estranho, muitas vezes está relacionado a morte, está relacionado a sexo, está relacionado a coisas nojentas também, e, tipo, todos esses três você consegue relacionar um com o outro ali, dá para relacionar. Porque na nossa cultura a gente tem esses certos tabus, de você não falar tão diretamente certas coisas e tudo. Em outra cultura de repente poderia não ter tanto, ou, independentemente de ter ou não, você tem que pensar também que, assim, é a crença, a religião, é o conceito de realidade que aquela cultura teria. Isso teria que abranger tudo, então vai abranger da vida à morte. É natural que você imagine que teria deuses de muitas coisas, entidades relacionadas a muitas coisas, porque para eles é como funcionaria a realidade. Mais para a frente a gente vai entrar em alguns exemplos de deuses de conceitos meio inusitados, mas não faz parte da realidade esse conceito? Então por que não ter entidade ou um mito relacionado àquilo? É muito comum, é muito fácil você pensar assim: “Ah, criação, é algo importante, então é bom ter um mito sobre isso”, sei lá, o amor, algo forte para nós, a vida, ter algo assim, mas conceitos mais simples ou conceitos que a gente nem gosta de conversar sobre também teriam. Para a cultura em geral, são importantes. Para uma cultura que não teria um tabu nisso, ela vai ter mito relacionado ali, e aí vai ser estranho, vai ser nojento. Muitas vezes aí encontra um mito, uma narrativa ali, você vai ver: “Nossa, que coisa nojenta”, mas para aquela cultura era importante.

Andriolli Costa: É, comendo merda, tem um monte de mito assim. Tem um famoso, que eu já escrevi sobre isso, que é o do diabo sem cu, vocês lembram disso?

Nilda: Que o cara vai lá e fura para ter o cu, não é isso?

Andriolli Costa: Isso. Eu fiz um post inclusive lá no Colecionador de Sacis que chama O Folclore e o Cu, porque as pessoas estavam falando, estavam compartilhando muito aquilo, tipo, “Nossa, que ridículo, que absurdo, que sem sentido”, não sei o quê. Tudo é assim. Tudo tem sentido, a gente que não captou. A gente não encontrou a chave de leitura. Bom, aí na história do diabo sem cu, que está presente no site do Museu da Amazônia e foi narrada por dois indígenas, um da etnia Tuyuka e outra da etnia Desana, e é uma história que, no fundo, é um mito de origem de um peixe chamado… meu deus, como é que é o nome do peixe? Sarapó? Enfim, não encontro o nome do peixe, mas é um peixe que também não tem o ânus no lugar onde devia ter. Então qual é a moral? Havia dois indígenas que moravam juntos, um deles era o primo e o outro era o diabo sem cu, e ele, obviamente pelo nome, não tinha ânus. E o que acontece ali durante a história? O diabo sem cu está andando e ele encontra as fezes do primo, e aí ele não sabe que são as fezes, porque elas estão na forma de um disquinho, como se fosse um biscoito, então ele começa a comer. E aí ele come e, depois que ele descobre que são as fezes, ele fala: “Putz, vai dar problema aqui”, porque, se você encontra as fezes de alguém, isso atrai azar, então por isso que a gente… não é só por higiene, é uma tradição muito antiga você esconder as fezes, enterrar as fezes, porque aquilo é um tabu. Se você encontra, vai dar ruim. Então o diabo sem cu come as fezes do primo e isso já atrai o azar sobre eles. Quando o diabo sem cu volta, o primo descobre que o diabo estava guardando uma mulher em casa, e aí o primo quer se relacionar com a mulher e acaba, para isso, então, tramando matar o diabo sem cu. Então um dia eles estão ali tomando banho no rio e o primo começa a defecar, e aí ele vê o cara defecando e aí fala: “O que você está fazendo?”, ele falou assim: “Ah, estou cagando”, aí falou: “Ah, mas eu não faço assim, eu faço pela garganta”, aí ele falou: “Ah, mas eu faço assim”, “Está bom, então você pode me ajudar? Me ensina a fazer assim?”, “Claro que eu ensino. Vira de costas”, e aí o diabo vira de costas, o primo pega uma lança e o mata, atravessa a lança no corpo dele, e, com isso, o sangue que escorre dá origem a vários peixes, e esses peixes também têm o ânus próximo à garganta. Então acaba sendo esse o mito de origem dos peixes que nascem das tripas do diabo sem cu.

Nilda: Ou seja, aí você já justificou o diabo e você justificou a necessidade ou o hábito de você enterrar as fezes. Tipo, crianças, tem que enterrar as fezes, senão dá azar. Você mata dois coelhos numa cajadada só.

Andriolli Costa: E esse é um outro grande problema da tradução, porque o próprio termo diabo é muito problemático, totalmente colonizado, e, por mais que sejam indígenas que estão narrando, eles estão narrando de um jeito para a gente conseguir entender, então eles estão usando diabo, mas tenho certeza que é mais um espírito – espírito sem cu.

Nilda: E a gente vai ter algumas histórias aqui que mexem com essa questão de higiene, com a questão do banheiro, e causam desconforto na gente e a gente não percebe que a gente tem alguns tabus, e um deles é falar sobre cagar. A gente tem esse tabu, a gente não fala, e a gente não percebe que a gente tem esse tabu, mas a gente tem.

Andriolli Costa: Os próprios mitos indígenas são cheios disso, tipo, fulano foi e urinou para caramba; quando ele o caga, o excremento vira alguma coisa. É muito comum isso e a gente acha bizarro, acha engraçadinho.

Leonardo: Já falando assim para o ouvinte, querendo ou não, quando você ouvir essas narrativas, é natural que você até dê risada, você até pode achar meio nojento e dar risada, isso tudo. Eu pessoalmente acho que o problema não é tanto isso em si, sabe? Vai ser difícil você não rir de algumas coisas ali; o grande problema é você achar que aquilo lá desvaloriza ou você dar risada – beleza, porque é algo estranho, você não imaginava -, mas tente entender o porquê daquilo lá ser daquele jeito. Não achar que aquilo lá: “Ah, então eles não tinham o que fazer, ficavam contando essas histórias nada a ver”. Não parta para esse lado.

Andriolli Costa: Uma coisa que eu vejo muito, por exemplo, quando a gente começou a compartilhar as histórias sobre o Ataíde, que é aquele mito paraense de um hominídeo, um besta-fera que tem um pênis gigantesco que vai até o pescoço, e estupra aqueles que entram no manguezal quando não pode. Um cara compartilhou falando: “Nossa, que coisa ridícula. Por isso que eu odeio folclore brasileiro”. Eu tenho que falar: você já viu uma estátua de sátiro na vida, meu filho? O tamanho do pau do sátiro não é por acaso, isso é uma constante mitológica.

Leonardo: Mitologia grega mesmo tem outros ali, o Príapo, o cara que foi amaldiçoado e ficava com o pênis gigante. Então isso tem também no que seria a mitologia bem-feita, digamos assim, a famosa e tudo, a de ouro.

Andriolli Costa: A que o boomer da mitologia adora.

[Trilha sonora]

Leonardo: Até, por exemplo, já entrando aqui nesses domínios estranhos, que a gente teria mitos relacionados a aspectos tabus ou a aspectos bizarros para nós, ainda nessa parte nojenta, por exemplo, os etruscos, os que, grosso modo, vão falar que deram origem aos romanos. A gente tem um episódio sobre mitologia etrusca para entrar mais a fundo, mas a gente tem uma divindade que era deles e ela era a deusa dos esgotos. (Inint) [00:24:48] imaginar o porquê alguém iria ter, alguma cultura teria algo assim, e algo nojento. Engraçado que ela acaba sendo tanto da sujeira quanto da pureza, então ela era uma divindade que cuidaria ali dos esgotos, era reverenciada por causa disso, e isso é um desses exemplos de culturas com valor diferente do nosso, e olha que é etrusco, está próximo de romano, que foi gerando a nossa cultura ocidental e tudo. Você consegue traçar uma linha melhor, mas mesmo assim, querendo ou não, você pega, é diferente. E eles davam muito valor para a questão do sistema de esgoto ali, tanto os etruscos e aí depois, principalmente, também os romanos. Tanto que essa deusa foi passada aí para os romanos. Digamos que o sistema de esgoto era algo que os romanos poderiam se orgulhar, porque precisa realmente fazer algo ali, ajustar, para poderem as cidades crescer da forma como foi. Então é algo importante. E a gente deixa o esgoto literalmente escondido debaixo da terra e esquece que aquilo lá é extremamente importante; para nós também é importante. Então, para uma cultura que tenha divindades, que tenha entidades em geral relacionadas aos conceitos importantes, faz sentido você ter, mas é algo diferente, é algo que você não espera. Você imagina deus do céu, do sol, aquela coisa bonita que você está sempre olhando ali no céu e tudo mais, mas também tem uma deusa dos esgotos.

Nilda: E é uma coisa que eu acho que faz todo o sentido ela ser deusa dos esgotos e da pureza, porque ter um sistema de esgoto eficiente você torna a cidade melhor, você vai jogar o esgoto em um local que não contamina a água, a água vai ser pura, você vai ter mais saúde, então, se essa deusa funciona, se os esgotos funcionam direito, você tem água pura. Isso pensando só em uma coisa essencial, que é a água. Então faz todo o sentido e eu acho que tem que divinizar mesmo. Infelizmente, a gente tenta esconder nossos dejetos, mas esconde tão bem que a gente não quer falar sobre eles, não quer dar um destino digno para eles, joga nos rios, depois cobre os rios. Aí resolve chover um pouco mais, o rio vai e quebra toda a cobertura que a gente jogou sobre ele, extravasa e joga de volta todo o esgoto que a gente está jogando lá. Então é uma deusa mesmo. Se ela mantém os esgotos funcionando, temos que venerar, fazer sacrifício, tudo para isso.

Leonardo: No caso, acabei falando da deusa, mas acabei não falando o nome dela, é a deusa Cloacina, e muitas vezes você, ouvinte, pode encontrar como Vênus Cloacina. Ela foi assimilada com a Vênus. Então é interessante você pegar uma deusa que em geral é vista como deusa do amor, ela foi relacionada com a deusa do esgoto, mas que também está relacionada com a deusa da pureza. A gente viu a Cloacina aí como uma deusa teoricamente boa, ela é necessária até, só que a gente tem na Mesopotâmia um deus do banheiro, o Sulak, e aí ele ataca as pessoas quando estão usando o banheiro. Apesar de você ver como um deus, ele tem um aspecto bem antagonista mesmo, ele é algo não desejado realmente, ele vai estar ali atacando as pessoas. Ele causa paralisia e derrame. Tem-se a ideia de que isso está relacionado, por exemplo, às pessoas terem muita – pelo menos naquela época, não sei até quando seria assim – paralisia e derrame quando estavam no banheiro, e por estarem em um momento frágil. Você está ali, não consegue escapar, não consegue fazer quase nada ali. Então era algo perigoso, tipo um bicho papão do banheiro seria, é algo perigoso mesmo.

Andriolli Costa: Lembrei daquela cena do Apanhador de Sonhos, do Stephen King, que sai um alienígena pelo banheiro, pelo vaso, e mata.

Nilda: Agora a gente está no banheiro, dentro da casa, a gente se sente razoavelmente seguro, mas, quando a gente vai para o banheiro, a gente vai defecar, é um momento que você está extremamente vulnerável para tudo, para doenças. Então, se você tem a ideia de que várias doenças são causadas por demônios, então deve ter um demônio que causa doença ali naquele local que você está extremamente vulnerável. Então a gente não pode ficar fazendo muita hora no banheiro, vai, usa e sai rapidinho. Tem muita empresa que ia gostar disso.

Andriolli Costa: Empresa que ia gostar disso. Imaginei agora uma startup espalhando lenda de ataque no banheiro para evitar funcionário.

Leonardo: Mais para a frente a gente vai falar de uma outra criatura que também tem a ver com isso aí. Mas ainda falando dessa questão de domínios inusitados, e aí a gente falou disso aí, de ser algo nojento, algo ali em relação ao banheiro que você não imaginaria, mas tem domínios que você até iria perguntar: “Por quê?”, mas é claro que você vai pesquisar mais a fundo, você entende, mas, por exemplo, a gente tem a Carna – você a encontra como Carna, ou Carnea ou Cardea. Ela é uma ninfa. Ela fez voto de castidade e aí o deus Jano, que está muito relacionado com a passagem de ano, com o início, tanto que Jano, janeiro, está relacionado com isso aí, e ele conseguiu se unir a ela – diga-se: ele conseguiu transar com ela. Como recompensa, ele deu para ela o poder sobre as dobradiças das portas, então ela seria relacionada às dobradiças das portas, um elemento extremamente simples para nós, não daríamos importância. Tem um motivo, porque o deus Jano está relacionado a isso, está relacionado a travessias, ele também por si só está relacionado às portas, e claro que ela vai além disso. Ela acaba sendo responsável por afastar o mal das entradas das casas, então ela, tipo, é da dobradiça da porta, mas ela é meio que uma protetora. Ele entregou um ramo de uma flor que fez com que ela fosse a protetora das portas das casas, das entradas. Quando você põe assim, você já vê um motivo maior, já vê uma importância ali, algo de proteger a casa. Tanto ela é relacionada com proteção que ela protege os recém-nascidos contra vampiros. Claro que, quando eu pesquisei essa questão dos vampiros, eu fiquei assim: “Vampiro pode ter sido um termo colocado mais atual aí e tudo”, mas eu imagino que possa ser essa ideia de proteger os recém-nascidos contra entidades ali, contra espíritos em geral.

Nilda: A gente já pensa aquele vampiro romeno, e talvez fosse só uma doença que a criança tenha que ela vá perdendo sangue – então foi atacada por um vampiro que está roubando sangue da criança.

Andriolli Costa: O que a gente tem muito é bruxa fazendo isso. Aqui no Brasil, a bruxa entra no quarto da criança, a criança vai adoecendo aos poucos, e uma das formas de você protegê-la é colocando cena de vela benta, cera de uma vela que foi rezada na igreja, nas fechaduras, porque a bruxa entra pelas fechaduras. Então, se você protege a fechadura, a criança vai estar a salvo dela.

Nilda: A gente acha, hoje em dia, que dobradiça é uma coisa comum, porque a gente vai ali, compra na esquina, alguém instala para a gente. Você já tentou instalar sozinho uma dobradiça para fazer aquilo ficar correto? Pensar aquele monte de volta com aquele negócio ali dá para poder fechar corretamente, meu, é uma coisa divina aquilo. Agora, você pensa, alguém chegou à conclusão e chegou àquela dobradiça. Antigamente, quem não tinha dinheiro para comprar uma dobradiça de ferro ou coisas mais antigas, você colocava alguma coisa como couro, um couro curtido, que ia dobrando e ia fazendo um tipo de fechadura, uma dobradiça mais rústica para você poder ter esse mecanismo de dobradiça na casa. É uma coisa mais rústica que existia. Então hoje em dia a gente ri da dobradiça, mas eu imagino que, para os etruscos, dobradiça era uma coisa realmente divina, porque aquilo não é uma coisa tão simples assim. É só uma coisa muito antiga, então a gente fica achando que é simples, mas não é. Até você chegar àquela conclusão e conseguir instalar uma dobradiça em uma porta que funcione.

[Trilha sonora]

[Bloco de recados]

[Trilha sonora]

Leonardo: Aqui a gente chegou a falar dos etruscos e dos romanos, falamos da Mesopotâmia; agora, a gente vai para o Japão, que aí esse eu tive que deixar um tópico específico disso, porque eles têm um grupo de seres que, em geral, é estranho mesmo e eu tive que filtrar, eu falei: “Quais são os mais estranhos para colocar aqui?”, mas eu acho que vale a pena futuramente aí um Papo Lendário sobre esses seres. Então, ouvinte, se você quiser aí, pode pedir que a gente faz. São os youkais. Eles tendem a ser mais conhecidos popularmente agora por a cultura oriental ser famosa também, então muita gente já conhece alguns aí. Algum ouvinte pode até conhecer uns que a gente vai falar. Mas um que eu adorei, eu achei muito legal o formato dele, é o Karakasa-obake – sei lá se a pronúncia é assim, mas se escreve dessa forma -, que é um guarda-chuva com braços humanos, uma única perna, um olho e uma língua. Tipo, ele é isso, o formato dele. E eu gostei de quando ele surge, porque é assim: os youkais são seres totalmente diferenciados, cada um é um formato, tem tipos e tipos de youkais, e aí, no caso, tem uns youkais que aparecem quando um objeto chega a 100 anos. Então fez 100 anos, se torna um youkai ali. E aí, no caso, esse Karakasa-obake é um guarda-chuva que chega a 100 anos. Então esse é um tipo mais específico ainda, quando é um guarda-chuva. E ele é muito esquisitão, assim.

Andriolli Costa: E ele está em todas, não é? Todo anime que tem um youkai, eles o botam. Deve ser bem famoso mesmo. Qual é o guarda-chuva mais velho que vocês já tiveram? Para mim, não dura um ano.

Leonardo: É, não, aqui no Brasil a gente está tranquilo, principalmente esses de camelô. Vai chegar a 100 anos? Meu, às vezes não dura uma chuva.

Nilda: São aqueles guarda-chuvas japoneses.

Leonardo: Que são grandões.

Nilda: E provavelmente à época que começou o costume, você tinha um guarda-chuva, você tinha que cuidar muito bem dele, porque não tinha sendo feito na China em linha de produção.

Leonardo: E é por isso que a gente acha esse youkai estranho, porque a gente não está acostumado com esse conceito de guarda-chuva durar tanto.

Andriolli Costa: Sim.

Leonardo: A gente nunca vai ver um desse.

Nilda: Eu, como boa otaku, a primeira vez que me lembro de ter reparado nesse youkai foi no anime Nurarihyon no Mago – o pessoal chama só de Nura mesmo -, que é exatamente sobre youkais, que é um conceito meio estranho, alguns lugares traduzem como demônio, mas não são demônios, são seres, porque é aquela coisa de a religião principal do Japão ser animista, então eles ainda têm esse animismo de objetos viraram sagrados ou virarem espíritos, ou, nesse objeto, você depositou muito sentimento, então você não pode descartá-lo de qualquer jeito. Então tem muito isso no Japão.

Leonardo: A grosso modo eu diria, claro, em um episódio aí de youkais a gente se aprofunda e tudo, então é só uma comparação rápida: eu acho que talvez os youkais estariam mais próximos talvez dos daemons – não dizendo que seriam demônios, mas daemons gregos são aquela coisa de espíritos que estão por ali, e aí independe, não está dizendo que é bom ou mau. Porque dos youkais eu encontrei isso aí, tem uns que são neutros, tem uns que tendem a ser mais bonzinhos, tem outros que já tendem a ser mais sacanas e tudo. Mas são espíritos que estão por ali, mas não são divindades grandonas, coisas desse tipo. Isso realmente não é. Então acho que se compara a isso. Mais para a frente a gente faz um episódio dos youkais. Agora, sobre esse guarda-chuva, eu achei legal que ele mostra bem esse conceito do apego ao objeto ali, aquela coisa que dura muito tempo. Eles se prendem muito a essa ideia.

Andriolli Costa: É o medo também, não é? Se você fica guardando a coisa por muito tempo, ela vai virar um bicho.

Leonardo: Exato.

Andriolli Costa: Então não seja um acumulador.

Nilda: Ou tenha reverência por tudo que você já teve ou usou, ou da família, porque isso aí deve ser um guarda-chuva do bisavô, não é?

Andriolli Costa: Quem quiser… também sobre youkais, tem um anime que ficou bem famoso na década de 50, 60, se não me engano, era um mangá na década de 50 e 60; depois, nos anos 80, ele foi tornado anime, que chama Akuma-kun. E, no Akuma-kun, esse menino – imagina ele assim: um pokémon com youkai – consegue convocar os youkais ali, fazendo amizade com eles, e tem um youkai que ele captura aqui no Brasil, quando ele vem. O youkai está jogando futebol, que é ninguém mais, ninguém menos do que o saci. Então temos em um mangá aí, anime japonês aí tradicional o saci marcando presença.

Leonardo: Bom, um outro youkai, e aí nesse, se eu não me engano, ele já é meio que maléfico… a gente estava falando aí a questão de sujeira, de nojo, anteriormente, a gente volta aí nesse assunto, que é o Aka-name. Ele é uma criatura que aparece nos banheiros sujos, que ele se alimenta do lodo e da sujeira que está ali no banheiro. Pesquisando sobre isso aí, eu vi muitas vezes o pessoal pondo que normalmente ele é usado para isso, para você não deixar o banheiro sujo. Aquela ideia bem de bicho papão, tipo: “Olha, vamos manter limpo, porque senão vem o bicho aí”.

Andriolli Costa: Você aí ouvinte que mora em república está querendo um desse, não é?

Nilda: Porque inicialmente você lê assim, você fala: “Olha que bom, ele vem aqui limpar”, mas não é, ele vem limpar, mas ele é um ser… provavelmente deixa tudo com espírito ruim e coisas desse tipo, que você acredita. Então, se chegou a vir um bicho desses no seu banheiro, é porque a situação está complicada mesmo nesse banheiro. Provavelmente deixa você doente também. Como a gente vê, aquilo que eu estava falando de tabus, no Japão eles não têm muitos tabus com essa questão de banheiro, de limpeza, de fazer xixi, de fazer cocô, de fazer nada, tanto que eles colocam isso até em animes ou em propagandas sem o menor problema. Aliás, foi vendo anime que eu percebi o quanto nós ocidentais somos travados com isso. Quer dizer, a gente tem realmente um tabu de falar; eles tascam lá o Naruto tendo dor de barriga e não tem o menor problema. Não tem um desenho ocidental, que eu saiba, que trate da questão de ir ao banheiro, a não ser que seja educativo.

Andriolli Costa: Eu fiquei bem impressionado quando adolescente. Eu fui ler o Xógum, e, apesar de o Xógum ser um livro inglês, do James Clavell, quando ele vai retratar ali como eram os costumes japoneses, tinha muito disso: o xogum, no caso, estava ali conversando com a pessoa e aí ele abaixava as calças e mijava ali na parede mesmo, e escarrava, cuspia do lado. Eu falei: “Caramba, que coisa estranha”, mas é isso, é uma questão totalmente cultural.

Leonardo: Um outro youkai aqui que eu pus na lista é o Shirime, e, ouvinte, pesquise aí, coloque aí: S-H-I-R-I-M-E, pesquise que você vai ver. Isso é bizarro. Vejam aí, quero ver a reação de vocês.

Andriolli Costa: Shirime. Ah, gente… ok. Eu lembrei do Kappa, que ele captura a sua shirikodama. Shiri já sabemos o que é.

Leonardo: Vou deixar isso aí para o ouvinte pesquisar.

Andriolli Costa: Gente… ouvinte, é o Mapinguari invertido.

Nilda: É, ele deu origem a alguns xingamentos. Olha, tem alguns xingamentos legais que a gente invoca isso aí.

Leonardo: E aí o último youkai, já fechando essa parte de youkais – eu vejo que eles em geral chamam muito a atenção pelo formato deles. Como, que nem eu falei, eles não são divindades grandiosas, então não chega a ter o mito de algo que se fez, uma criação, coisa desse tipo. Eles são muito localizados. A estranheza deles é muito no que eles fazem ali, no método deles, que nem o outro que lambe, limpa a sujeira ali, se alimenta da sujeira, ou então o formato, no caso do guarda-chuva, e a gente tem, por exemplo, o Nuppeppo, que é uma massa de carne humana. É carne, mas, quando você pesquisa, parece uma bolota de gordura, um sebo ali, às vezes com um pezinho, com perninhas. E ele não é ruim em si. O pessoal fala que ele é fedido, coisa assim, mas não causa mal em si, só que, que nem eu falei, não é nada grandioso ali. Mas isso que eu acho interessante: eles são coisas bem da cultura. É uma coisa que eu não imagino a gente tendo aqui na nossa cultura, porque, como eu falei, não está relacionado a um mito de criação, um mito universal, não, ele é um elemento bem localizado. Isso eu acho legal e é por isso que é diferente, por isso que é bizarro.

Andriolli Costa: Muito bom, Leo. Muito bom. Estou impactado ainda.

[Trilha sonora]

Leonardo: Que nem a gente falou, dos youkais é algo localizado, mas ainda na cultura oriental a gente já tem mitos relacionados à criação de alguns elementos em si, e aí trazem algo assustador, algo estranho, só que, quando eu pesquisei nessa aqui da Ukemochi, uma deusa dos alimentos. Só que aí eu vi: estranho, realmente, bizarra a forma do mito dela, só que aí você pega outras culturas, outras mitologias que eu já estou mais acostumado, e eu falei: “Pô, também é parecido com isso”, e aí eu vi: olha só, é estranho porque eu não conhecia, não tinha visto, aí isso retoma aquilo que eu falei no início. Algo que eu já estou acostumado está ok. Sobre o mito dela: no caso, ela é a deusa dos alimentos e ela ofereceu comida para o deus Tsukuyomi, só que ela ofereceu vomitando. Ela vomitou arroz e peixe. Aí ele não curtiu, digamos que ele também achou bizarro, assim, e a matou, e aí, do cadáver dela, continuou surgindo alimentos. Então da cabeça vieram o cavalo e a vaca, do abdômen veio o arroz, do ouvido veio o milho, das partes íntimas – olha aí o nosso tabu, a gente fala partes íntimas para não falar o nome – vieram o trigo, o feijão e a soja, da sobrancelha veio o bicho-da-seda. Então do corpo dela, além de ela ter vomitado, do corpo morto dela, do cadáver vieram alimentos. Isso é meio estranho. E aí eu fui lembrando: mitologia nórdica é algo que eu já estou mais acostumado – essa deusa eu não conhecia -, o Odin criou o mundo, ele e os irmãos dele, do cadáver de um gigante.

Andriolli Costa: E é aquela história também de Urano, que foi castrado, e aí do sangue dele nasce a vida… como é? É uma coisa do tipo assim: do sangue nasce a vida nos mares…

Leonardo: É, do sangue vem as fúrias – não lembro se tem mais coisas, mas as fúrias eu sei que vêm do sangue – e a mais famosa, Afrodite, em uma das versões dela, ela veio do pênis dele.

Andriolli Costa: Alguma coisa a ver com esperma, não tinha? Porque é da espuma do mar que forma a Afrodite, e a espuma é o esperma, total.

Leonardo: Isso a gente já está acostumado, já ouviu mais vezes essas narrativas. Aí, quando fui vendo essa deusa, nossa, estranho, mas ao mesmo tempo seguindo o mesmo conceito que você encontra em outras mitologias.

Andriolli Costa: Acabei de falar ali de Urano, eu lembrei do clássico, que é o Cronos com Zeus. Vamos retroceder ainda antes de Cronos, que é Urano mesmo, que Urano vai empurrando os filhos de volta. Então, se Cronos come os filhos, Urano, quando a mulher está grávida, antes de eles nascerem, empurra de volta com o próprio pênis. Então é por isso que ele é castrado ainda de dentro do corpo da esposa, e é Cronos que castra Urano assim. Você não consegue visualizar isso, porque não é para ser visualizado, é para ser absorvido. Então como assim? Vai tentar visualizar dois gigantes, e aí Cronos ali dentro do canal vaginal… não faz sentido, gente. Então essa imagem não tem que ser construída como se fosse cinemática; é uma imagem que tem que nos atravessar, e a gente entende pelo atravessamento, porque, vamos pensar assim: castrar esse pai controlador é iniciar um processo de liberdade. A mesma coisa depois vai ser quando Cronos, intimidado, vai começar a comer seus filhos para que não fique ninguém capaz de enfrentá-lo. Então esconder Zeus de Cronos é também dar essa oportunidade para que o novo surja. Enfim, temos muitas questões ali sendo levantadas.

Leonardo: Foi interessante você ter posto isso do Urano e dos filhos dele, porque, no caso, fica estranho quando você está imaginando uma versão personificada, como você falou, dois gigantes. Mas, se você for parar para pensar que é o céu e a terra, aí já você começa a perceber: “Ah, está querendo passar essa ideia”, porque são o céu e a terra que estariam unidos, mas, para ter vida, para começar a desenvolver, você tem que separar os dois. E isso a gente encontra nos gregos, nesse caso, mas nos egípcios também tem isso de ir lá uma outra divindade e separar o céu e a terra, mesopotâmico tem isso.

Andriolli Costa: Cristão tem isso, tem que formar o céu e formar a terra como coisas distintas. Antes era tudo a mesma coisa. Outra que eu lembrei é Atena, que nasce da cabeça de Zeus, não é isso?

Leonardo: Sim, verdade. Está vendo? São uns que eu estou tão acostumado que eu esqueço.

Andriolli Costa: Você vai imaginar o quê? É uma espinha? Gente, para com isso.

Leonardo: O Zeus estava lá morrendo de dor de cabeça e aí ele pediu ajuda para o Hefesto rachar a cabeça dele, dar uma machadada ali para resolver isso aí. Ele vai lá, abre a cabeça dele e aí que sai a deusa dali, e ela já sai adulta, armada e dando um grito de guerra. Então isso aí são coisas que vão mostrando o aspecto dela. O fato até de ela nascer da cabeça de Zeus já está relacionado ao aspecto dela.

Andriolli Costa: Uma deusa guerreira, estrategista.

Leonardo: Um outro motivo que a gente tem que sempre ficar de olho – a gente citou aí rapidamente – é que a gente não conhece tudo dos povos antigos ali, e vai mudando língua, vão mudando alguns conceitos ali, então muitas vezes vêm traduções que a gente se perde em si, tem coisas erradas. E, por exemplo – e aí isso gera muita dúvida -, um elemento meio estranho é o Naglfar. Ele, no caso, é um navio na mitologia nórdica que vai aparecer no Ragnarok e ele é feito de unhas dos mortos.

Andriolli Costa: Caraca.

Leonardo: Então, tipo, bem pesado, uma coisa meio até nojenta. Só que é aquele negócio: tem-se a dúvida do quanto realmente seria isso, porque tem uma dúvida na tradução, se a palavra ali realmente significava unha, se estava só parecida, próxima. Toda uma discussão que quem manja dos idiomas ia entender, mas os estudiosos não têm muita certeza. Então fica essa dúvida. Realmente é algo assustador que, para um elemento que, no caso, eles são vilões, eles vão vir no Ragnarok junto com a Hela para enfrentar os deuses, então, por serem vilões, digamos assim, por ser algo ali que vai combater os deuses, até você imagina algo feio ou nojento, algo assim, mas também pode ser esse erro da tradução. Então nesse ponto a gente já fica nessa dúvida. Então realmente você tem que tomar um certo cuidado. Por isso que são pesquisas que nunca terminam, porque sempre vai ter… em uma época defende algo, depois vai vendo que pode ser outra coisa.

Andriolli Costa: Inclusive com línguas indígenas aqui brasileiras, o pessoal… se joga no Google, eles vão encontrar uns dicionários que são muito frustrantes. Quem não tem um raciocínio crítico, compra isso com muita facilidade. Por exemplo: caramuru. Aí você procura no Google, às vezes aparece como dragão. O artista bota isso e você fala assim: “Nossa, maravilhoso”, desenha ali, dragão brasileiro, caramuru, faz aquele negócio. Porque você não pode ir direto para o significado daquilo que foi interpretado, você tem que ir para a etimologia da palavra. Aí você vai vendo assim: caramuru era uma coisa do tipo assim: aquele que faz o som do trovão, não lembro, mas tinha alguma coisa a ver com o som que fazia ali nas ondas da praia batendo. Então aí europeus começaram a usar caramuru para se referir a alguma coisa que acabou virando dragão, sabe-se lá em que interpretação. Então, se você pula direto da palavra para aquilo que ela virou sendo entendida no futuro, você incorre em erros muito grandes. Depois eu vou mandar para o Leo aí um link sobre a tradução de caramuru direitinho, para que vocês não fiquem no vácuo da informação, mas é uma coisa que sempre me incomodou demais.

Leonardo: Isso porque aí pelo menos teve uma certa tradução. Pior é quando… você foi falando isso aí, de algo daqui, eu lembrei do Boitatá, quando o pessoal nem faz a tradução – vê aquela palavra e acha que é um boi.

Andriolli Costa: Um boi, claro. Vi uma matéria hoje falando assim: Icamiabas, que significa guerreiras amazonas. Claro que não, como assim? O significado de icamiaba é o seio partido, o seio ausente, tanto que ica é o seio. No caso, é porque elas queimariam o próprio seio direito para usar o arco e flecha e aí disso se faz uma referência às guerreiras amazonas, legendárias também, que tiraram parte do seio para poder também, na Grécia, lutar. E aí acaba uma coisa se misturando com a outra no imaginário, mas o significado de icamiaba não é guerreira amazona.

Leonardo: Bom, a próxima deusa que a gente tem aqui – porque a gente passou pelo Japão, falou romano, falou daqui do Brasil e tudo, mas a gente não passou dos hindus, e seres, divindades estranhas, com aparências estranhas, realmente, no hinduísmo tem bastante, até porque lá tem muito deus, tem muitas divindades, então seria natural também que tivesse. E aí muita gente pode ter imaginado agora que eu ia falar da Kali, mas não, a Kali para mim já está muito, com todo o respeito a ela, batida, porque eu já a conheço muito, aí você encontra facilmente. E aí eu vi uma que eu achei mais…

Nilda: Um hipsterzinho (inint) [00:53:09].

Leonardo: É.

Nilda: É um hipsterzinho, o Leo: “Ah, eu já conhecia a Kali antes de todo mundo”.

Leonardo: E aí eu gostei de encontrar essa outra divindade aqui que, para a mitologia hindu, também é bem famosa, mas você não encontra tanto quanto a Kali, mas ela também tem esse aspecto bem agressivo. Inclusive até ela se une com o conceito da Kali, porque ela é uma versão da deusa Devi, da mesma forma que a Kali também é assim. Então, ou seja, é uma outra faceta também. E ela é bem agressiva, a imagem dela, que ela é uma deusa que se mostra autodecapitada, então ela está segurando a espada com uma mão, com a outra ela está segurando a própria cabeça e, do pescoço dela, fica jorrando sangue, e outras mulheres ao redor dela estão bebendo esse sangue. Então, tipo, independentemente do valor dela, da mensagem dela, do mito dela, essa imagem, principalmente que deuses indianos têm muita representação ali naquelas pinturas e tudo mais, é uma imagem, para nós, bem agressiva. Tipo, ela se decapitou e outras mulheres estão ali bebendo do sangue.

Nilda: Ouvinte, eu fui ler a pauta, o Leo colocou: deusa hindu e budista do autossacrifício. A primeira coisa que eu imaginei é que era uma pessoa que se sacrificava pelos outros, porque é budista, não é? Não, ela é autossacrifício porque ela corta a própria cabeça. Eu li a primeira linha e falei: “Ué, o que tem de bizarro em ser uma deusa que se autossacrifica?”, não, é outro sentido de autossacrifício, é literal.

Leonardo: Sim. O legal de mostrar essa divindade, como eu falei, ela é um pouquinho mais desconhecida para nós aqui, então é legal ir atrás dela, tanto que em português eu encontrei bem pouca coisa mesmo falando dela, tive que ir para outras línguas para poder dar uma traduzida e entender mais sobre ela, sobre um mito dela que mostra que ela e o pessoal que a acompanha estavam tomando banho, estavam tanto tempo ali que começou a dar fome, estavam com uma extrema fome ali. Seria uma deusa da misericórdia também. Ela pegou e fez isso para saciar o apetite de quem estava acompanhando ali, então ela fez uma boa ação.

Nilda: Então fez um autossacrifício nesse outro sentido também?

Leonardo: Sim, sim, em todos os sentidos ali. Então, você vê, foi algo bom, e mesmo assim ela é uma deusa agressiva, é que nem a Kali, ela é bem parecida com a Kali. Vocês têm alguma outra entidade, algum outro ser, algum outro mito?

Andriolli Costa: A gente perpassou um pouco isso, mas é a questão dos mitos que têm relação com o falo. Então tem muitos lugares em que o Curupira… aqui entre os paraguaios, os guaranis, temos o Curupi, que sempre tem o pênis gigante, mas, em algumas regiões, o Curupira mesmo é assim. Então, por vezes, você vai encontrar histórias em que ele pega um pedaço de pau e bate no caçador; em outras, ele pega o próprio pau e bate no caçador. E todos esses mitos que têm pênis gigante é porque você está reforçando uma característica – vocês provavelmente já ouviram isso -, que é aquela distinção entre natureza e cultura: quanto mais ligado à natureza, maiores as características ali da bestialidade, da animalidade. Então aí temos pênis gigantes. Agora, o contrário, se você é mais ligado à cultura, então aí a representação é diferente. Então estão falando ali de um Curupira mais feral? Ele vai ter pênis grande. E isso é comum. E aí você encontra extrapolações: não é só um pênis grande tradicional, ele é capaz de montar um laço com o pênis e laçar pessoas, então você vai escalonando: então é grande – é grande quanto? É grande para bater nos outros. E o que mais? É grande para laçar os outros. Então você vai chegando cada vez mais.

Nilda: A gente pensa que essas histórias são contadas, vamos dizer assim, na beira da fogueira à noite, porque eu fico imaginando um contador de histórias contando isso. Sabe aquela coisa do cara contando causo? E tem muito isso no contar o causo, de você dar uma exagerada, de você dar aquela coisa, a história do pescador. Então eu imagino as pessoas contando essas histórias: o Curupira é bestial, é isso e tal, porque ele tem o pau grande. Dependendo de como você está contando, você vira o laço mesmo, porque depende da história que você conta, da empolgação. E aí aquela história passa para frente, daqui a pouco vira a história oficial daquela área.

Andriolli Costa: Eu gravei um programa sobre causos pantaneiros com um cara que fez a compilação de histórias assim que os contadores narravam para ele, e aí ele fala assim: “Olha, tinha um cara lá que era aquele tipo de contador de histórias que não tem nenhuma preocupação em passar verossimilhança, o que importa é a história, então ele vai indo na moral, então a bicicleta dele tinha 150 marchas. Ele pedia desculpas por ter atrasado, porque o primo dele, Leonel Brizola, tinha acabado de deixá-lo de avião ali na fazenda. E esse é o cara que depois vai falar assim: ‘A onça pulou assim para me pegar e eu segurei nas duas munhecas dela e juntei o bicho. Aí ela ficou tentando me morder e eu segurando a onça pelos braços. E aí o que eu fiz? Eu não conseguia soltar, porque ela ia me pegar, e aí ela estava tentando me morder. Eu levei a onça até um toco e bati o (censurado) dela no toco. Aí ela gritou, saiu correndo, fugindo, e está fugindo até hoje'”.

Leonardo: É, isso é muito aquela ideia do exagero. É, mas é interessante ter falado até dessa questão de exagero, e aí é uma crítica, quando eu fui pesquisando a pauta, que eu vou fazer a quem fez essa crítica, no caso, porque alguns autores antigos aí acusavam – a gente falou de divindades romanas – os romanos de ter deuses para tudo, ter muitas divindades e tudo, então autores antigos falando de algo mais antigo assim e criticando, porque Roma queria ser algo ambicioso e ter divindade para tudo. E ok, beleza, eu li isso aí e fiquei pensando, comparando com diversos outros pontos aí que eu pus na pauta, eu fiquei pensando: isso aí realmente é uma crítica em si, os romanos realmente faziam isso, ou isso advém da visão que esses autores teriam, de terem valores diferentes? Porque muito aí, desde o começo do episódio, a gente foi mostrando isso, que muitas vezes algo é estranho, algo é bizarro, você vai achar estranho por você não estar acostumado com esse outro valor, por aquilo ser tabu para você. Então eu fico pensando: esse pessoal criticou, mas de repente isso era útil lá em Roma, por isso que tinha. Era necessário, e necessário tanto socialmente, politicamente. A gente tem que lembrar como Roma utilizou a questão de crenças ali para… bom, a mudança da religião em parte ali foi isso. Então tem motivo, tanto na crença, quanto na política, o corpo total ali da sociedade. Então você, sei lá, pôr isso como ruim ou errado, não sei… eu critico essa crítica que eles fizeram. A gente tem que ver por que naquela era assim, e isso falando dos romanos, mas falando de todas essas culturas que a gente falou aí no episódio, todos esses elementos estranhos que a gente viu, a gente tem que olhar o porquê é daquele jeito ao invés de somente criticar, falar que não faz sentido, falar que não tem valor. Que nem o Andriolli falou: “Isso é o folclore daqui, por isso que eu não gosto”, que ele deu aquele exemplo. A gente não pode cair nisso, a gente tem que entender o porquê é daquele jeito e entender as variações que teve com o tempo, com as traduções e tudo mais. Então é algo muito mais complexo.

Andriolli Costa: Coisas que hoje a gente esconde. A gente falou muito aqui da excrescência, da genitália, isso faz parte. A gente acha engraçadinho assim e esquisito, mas é para mostrar como a gente talvez seja mais pudico do que esse povo que era antes. Eu compartilhei um benzimento – talvez vocês tenham visto – no Instagram, que é um benzimento para se livrar de quebranto, coletado aqui no Rio Grande do Sul, entre benzedeiros e benzedeiras cristãos, daquelas assim clássicas, católicas. E aí o benzimento era basicamente: “Te benzo e rebenzo com a chave do baú. Que o quebranto que tu tinhas saia pelo cu”. E aí o pessoal começou a rir, falou assim: “Hahaha, vai sair uma caganeira”, mas é isso mesmo, cara, como você acha que sai a doença de você? Tanto que um autobenzimento muito forte é você passar a mão na sua barriga e ficar falando: “Mal que me toma, que saia por cima ou saia por baixo, saia por cima ou saia por baixo, saia por cima ou saia por baixo”, e aí você vai ou vomitar ou você vai cagar, mas o mal não vai ficar ali. E não tem como você ficar bem com a barriga doendo, então é melhor botar para fora.

[Trilha sonora]

Andriolli Costa: O santo, Nilda, tem uma parte na parte na pauta sobre santo, você sabe de algum? Aqueles santos cachorros.

Leonardo: O santo é um cachorro?

Nilda: É ligado a animais, cachorros. É.

Andriolli Costa: São Guinefort. Procura aí: São Guinefort. É um cachorro santo. É um cão francês do século 13 que virou um santo popular.

Leonardo: Olha só.

Nilda: E faz certo sentido, um doguinho bem bonitinho. Mas as histórias dos santos são muito estranhas, porque alguns santos, você olha aquela história, você… eu não fiz um compilado para essa pauta, porque eu acho que até valeria uma pauta própria, porque tem alguns santos que você fica assim: “De onde… por que o cara é santo?”, e você vai olhar e é uma coisa bem esdrúxula e, dependendo da explicação que você pega sobre o santo, na verdade, é a incorporação de algum ser muito popular que você colocou ali, aí você o adapta. De repente, aquilo não faz mais sentido para o cristão, para o cara vira santo. Tanto que alguns, no Concílio Vaticano II, se tentou abolir – alguns santos -, porque não fazia sentido você ter aqueles santos ali. É igual à história do São Jorge, que é santo católico sim, tem gente que diz que não, que deixou de ser, mas, sei lá, o santo, o que ele fez? Ah, ele lutou com dragão. Sabe? Oi? E além do São Jorge, o São Denis também, que é um santo francês, lutou com um dragão, e ele é santo porque ele livrou alguém de um dragão. Se você pensar bem, é um motivo bem bizarro para uma pessoa ser santa.

Andriolli Costa: Santa Marta dominou um dragão.

Nilda: Tem essas coisas. Tem algumas explicações do que seria esse dragão, um símbolo mitológico, mas em muitos casos é para você substituir também algum outro ser que estava ali, que era o ser que te protegia do dragão, que seria algum tipo de mal, seria um ser que te traria doença, então você pega e transforma em deus. Acho que a mais famosa é Santa Brígida, que é a santa da cerveja, que, na verdade, é uma adaptação de deusa irlandesa da cerveja.

Leonardo: Sim, é a Brigit.

Andriolli Costa: E aquele santo que era Jesus de vestido? Você lembra desse? É que eles representavam Jesus, ao invés de nu na cruz, aí falaram assim: isso é uma santa – já que está de vestido, é uma mulher -, só que é uma santa barbada. É santa Vilgeforte Liberata. Vocês podem procurar a imagem dela, é exatamente isso, é Jesus com um vestido, com um robe, mas aí, como era impossível pensar como sendo um homem, então aí virou uma mulher. Aí criou-se toda a história aí de Santa Vilgeforte.

Leonardo: Bom, a gente conseguiu aí colocar alguns bem estranhos, alguns eu nem conhecia. Esse do cachorro eu gostei para caramba, eu vi aqui a foto dele. Gostei. A imagem dele. Gostei.

Andriolli Costa: Mitografias sobre santos populares, hein? Comenta aí embaixo se você quer.

Leonardo: Ouvinte, também gostaria que você comentasse aí outras divindades, ou mitos, ou seres em geral que você acha estranho. Como a gente já falou, alguns eu já estou tão acostumado que, para mim, eu não acho nem mais estranhos, já acostumei; agora, esses que eu pus na pauta, que me chamaram a atenção. Mas diga aí quais você acha estranhos, algum que faltou, fique à vontade para comentar. E é isso, então. Até mais.

Andriolli Costa: Valeu.

Nilda: Tchau, tchau.

[Trilha sonora]

[01:07:26]

(FIM)