Vitrine do episódio. Xilogravura do artista John Savio, que mostra em bege e preto uma paisagem com montes ao fundo e uma rena caminhando.

Papo Lendário #229 – Os Povos Samis

Nesse episódio do Papo Lendário, Leonardo entrevista Victor Hugo Sampaio Alves, sobre a cultura, religião e mitologia dos povos Samis.

Conheça quem são esses povos residentes no extremo norte da Europa. Aqui conversamos sobre o problema da visão do estrangeiro sobre esses povos indigenas e como podemos comparar tais casos com eventos semelhantes aqui em nossa região.

O problema do apagamento cultural e como isso reflete em existir poucas referências sobre seus mitos, panteões, costumes, línguas, etc. Resultado de uma visão xenofóbica e colonialista.

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— EQUIPE —

Pauta, edição: Leonardo
Locução da abertura: Ira Croft
Host: Leonardo
Participante: Victor Hugo Sampaio Alves

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— Transcrição realizada por Amanda Barreiro (@manda_barreiro)

[00:00:00]

[Vinheta de abertura]: Você está ouvindo Papo Lendário, podcast de mitologias do projeto Mitografias. Quer conhecer sobre mitos, lendas, folclore e muito mais? Acesse: mitografias.com.br.

[Trilha sonora]

Leonardo: Muito bem, ouvinte. O episódio de hoje é voltado para uma cultura específica e seus mitos, mas, que apesar de se localizar na Europa, nós não temos tanta informação assim. Hoje, então, conversaremos sobre os povos Samis, e, por isso, o convidado de hoje é o Victor, que já tem pesquisas e conteúdo sobre o tema. Victor, obrigado pela presença, e, antes de entrarmos no tema, se apresente para o nosso ouvinte.

Victor: Oi, Leonardo, boa noite. Boa noite para todo mundo que está acompanhando a gente, escutando. Queria agradecer o espaço, principalmente para a gente abordar um pouquinho da história, da cultura e dos mitos desse povo que é tão pouco estudado, é tão pouco abordado aqui no Brasil. Muita gente nunca ouviu falar. É um grande prazer estar aqui. Bem, eu sou doutorando em Ciência das Religiões pela UFPB – Universidade Federal da Paraíba, eu também fiz o meu mestrado lá, também em Ciência das Religiões. Na verdade, eu não estudo única e exclusivamente os povos samis. Comecei a estudar sobre eles durante o mestrado, mas em uma conjuntura comparativa. Eu trabalho com a perspectiva da mitologia comparada, e aí eu estudava especificamente deuses do trovão, e eu estudei os deuses samis do trovão comparando-os com deuses escandinavos, como Thor, e finlandeses. Então ali começou a aflorar o interesse por essa cultura, primeiro porque era muito relevante para o que eu estava estudando, para o que eu estava me propondo a discutir. Sempre aquela história: você, quando começa a estudar um mito ou a mitologia de um povo, você não pode parar por ali, então você sempre precisa ver o contexto histórico, social, uma questão linguística, étnica, e tudo isso vai influenciar nas conclusões, nas perguntas que você levanta e na forma como você quer respondê-las. E assim a gente vai fazendo pesquisa. No doutorado, eu continuo na perspectiva comparativa entre esses povos escandinavos, finlandeses e os samis, mas não é mais focado em divindades do trovão. Na verdade, é uma pesquisa comparativa em torno da questão da magia xamânica e da visão de mundo xamânica que esses povos ali do norte europeu compartilhavam em certa medida. Então isso é um pouquinho do meu histórico, lugar de onde eu venho. Meus interesses atuais, como eu disse, são xamanismo, magia, algumas questões relacionadas a divindades específicas e também é importante aqui frisar que eu pertenço a dois grupos de estudo, o NEVE – o Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos, e o CIMEEP, que é o Centro Internacional e Multidisciplinar de Estudos Épicos. Então todos os estudos que eu desenvolvo são fruto de uma troca que eu tenho com os membros desses grupos, e muita ajuda, enfim, muito compartilhar, então sempre me coloco como um devedor do que esses grupos me oferecem.

Leonardo: Bom, então vamos já falar aí do tema de hoje. Algo que você falou é interessante, de estudar a mitologia ali, mas também estudar a cultura, que é o que a gente vai pôr aí hoje, principalmente acho que dos samis não tem como separar isso, por ser algo bem desconhecido, principalmente aqui no Brasil. Acho que é bem importante quando estudar, quando falar das crenças, do panteão e tudo, é legal também falar da cultura, de quem realmente eles são. Então acho que é legal a gente começar por isso: quem são os povos samis?

Victor: Vamos lá. Bem, os povos samis são povos indígenas, povos originários, tradicionais, enfim, que habitam a região do extremo-norte europeu. Claro que hoje em dia tem povos ou pessoas de ascendência sami localizados em outros lugares, nos Estados Unidos, Canadá, mais ao sul da Europa etc., mas o local, o locus deles mesmo é essa região do extremo-norte europeu. Eles não têm um território, uma nação, então é difícil a gente precisar uma localização específica. Grosso modo, os povos samis estão espalhados por uma região ali que vai do norte da Noruega, Suécia, Finlândia, até um pouco de uma parte do extremo-norte da Rússia, então em cada um desses países eles habitam o extremo-norte, então o extremo-norte da Noruega, Suécia, Finlândia etc., embora, como eu disse anteriormente, hoje em dia, é claro, eles habitam grandes cidades, grandes centros, capitais desses locais, mas, quando a gente pensa, por exemplo, uma Idade Média ou até o começo da Idade Moderna, eles estavam mais ao norte. O que é interessante a gente falar? Primeiro, a gente estipular aqui uma divisão linguística, porque os samis, ao contrário de diversos outros povos, principalmente da Europa, não são dessa grande família linguística muito famosa, que é o indo-europeu. Então, por exemplo, os vizinhos dos samis, os escandinavos, que a gente conhece por vikings, eram povos de um ramo linguístico dentro do germânico, e o germânico, por sua vez, estava dentro dessa família linguística, que era o indo-europeu, e o indo-europeu também englobava o ramo eslavo, celta, indiano, persa, enfim, greco-romano. Então são muitas famílias, muitos troncos linguísticos dentro do indo-europeu. Os samis pertencem a uma família linguística que é chamada de urálico. Urálico é o nome que a gente dá para uma série de povos que se acredita que eles tenham se originado nos Montes Urais e dali se disseminaram principalmente para o norte da Eurásia. Então por isso que a gente chama urálicos – vem do nome dos Montes Urais. Então os samis estão dentro dessa família linguística e dentro de um sub-ramo que se chama fino-úgrico e que inclui diversos outros povos. Então, só para a gente situar, isso significa o quê? Por que é importante a gente saber disso? Primeiro por uma questão de heranças culturais, então sempre que a gente estuda mitologia de um povo, principalmente de uma perspectiva comparativa, a gente pode estudar o que ali é uma provável herança cultural. Então, por exemplo, uma herança cultural germânica, tipicamente germânica, no caso dos vikings, tipicamente indo-europeia. No caso dos samis, o que eles podem ter tido de uma herança cultural fino-úgrica, urálica? E aí, dentro disso, encontra-se – a gente vai abordar um pouquinho depois -, por exemplo, a questão do xamanismo. Essa é uma herança cultural dos povos urálicos. E, em segundo lugar, é interessante a gente saber isso para a gente imaginar como eram essas interações, então, quando a gente pensa, por exemplo, o norte europeu na Idade Média, você tem povos em contato, intercâmbio, não só violento, não é só guerra, mas muito comércio, muita relação conjugal, e esses povos falam línguas completamente incompreensíveis de um para o outro. Então é muito interessante, porque isso ressalta para a gente como que pode haver uma troca, um trânsito de símbolos mitológicos, religiosos, espirituais, mesmo sem que haja uma compreensão fluente, transparente linguisticamente. Então isso está nesses encontros entre os samis e os vikings, por exemplo, na cultura material: dois povos se encontram, de repente ali há uma troca de moeda ou de algum tipo de material e eles se interessam por um símbolo que está ali, aquele símbolo que é uma divindade do povo com quem você manteve contato. Então isso sempre é muito interessante, porque mostra para a gente como os símbolos religiosos podem ser transmitidos para além da língua. E, para a gente ter uma ideia, os idiomas urálicos são tão diferentes dos idiomas indo-europeus que a gente, hoje – em tese, claro, isso é uma teoria -, aqui no Brasil, fala uma língua indo-europeia, então a gente falaria um idioma mais próximo do que um viking falava, por exemplo, do que um sami falava em relação a um viking, porque nós dois falamos idiomas indo-europeus, e um sami está em um ramo linguístico completamente distinto. Então isso é muito interessante. Bem, essa região por onde os samis estavam espalhados, a gente costuma chamar de Sápmi. Então, como eu disse, Sápmi não é um país, não é um território específico, com fronteiras delimitadas, mas é o termo que a gente usa para denotar essa localidade onde vivem vários desses povos samis. Essa região toda, como eu disse, desde a Noruega até a Rússia, pelo norte, é denominada Sápmi. E o que é também muito importante, de novo, por conta de uma perspectiva comparativa, é a gente frisar que os samis são pertencentes à toda área circumpolar. A área circumpolar é justamente essa área do extremo norte, que é uma área, como o nome fala, polar, que engloba, então, desde a Sibéria até o outro lado ali do mundo, até, a região polar do Canadá, por exemplo, do Alasca etc. E esses povos, todos esses povos que estão nessa grande faixa circumpolar, vários estudos antropológicos, históricos, detectam muitas coisas em comum, e isso não necessariamente indica que eles sejam todos povos que tenham tido os mesmos ancestrais e nem nada do tipo necessariamente, mas que, nessa perspectiva ecológica, ou seja, pensando no entorno desses povos espalhados pela região circumpolar, você nota que eles acabam desenvolvendo símbolos, visões de mundo, ideologias culturais muito semelhantes.

Leonardo: Poderia, por exemplo, fazer uma comparação com os inuítes?

Victor: Com certeza. A gente não só pode como muitos antropólogos e historiadores fazem a comparação entre os samis e os inuítes, entre os samis e os povos nativos do Canadá e dos Estados Unidos que estão nessa faixa, nessa região circumpolar. E uma coisa que conecta todos eles, por exemplo, é o xamanismo, é a crença em espíritos auxiliares, é a crença em xamãs que conseguem se metamorfosear e se transformar em um animal, por exemplo, é a crença na habilidade de o xamã viajar entre mundos, que não o nosso, e carregar informações, obter conhecimentos ou curas desses outros mundos. Então há muitos paralelos, com certeza.

[Trilha sonora]

Leonardo: Quando a gente fala essa questão do indo-europeu, e aí, no caso, o que seria deles, o urálico, é muito comum você estudar como questões linguísticas, mas quem está acostumado com questões de estudos de mitos houve esses mesmos termos, mas voltados para questões da mitologia. A gente vê a origem ou pelo menos um precedente da mitologia greco-romana: você vai para os indo-europeus; dos hindus, dos persas… então vai seguindo o mesmo caminho das línguas, e isso é bem interessante a gente ver, porque a cultura, a língua e a crença, os panteões vão tudo nos mesmos caminhos. Tudo vai voltando para o indo-europeu – alguns -, aí outros, no caso do urálico… e uma coisa que me chamou muito a atenção é isso aí de estar algo ali tendo contato um com o outro, mas são de origens distintas. Isso eu acho bem legal. É diferente de um grego com um romano ou mesmo com um nórdico, que você vai lá e vai puxar uma linha originária para os indo-europeus. Não, esse aí também estava ali do lado, pelo menos dos outros nórdicos, dos germânicos, estavam próximos, mas é distinta a origem. Isso é bem interessante.

Victor: Isso toca em um ponto que é extremamente polêmico e que está no próprio nascimento da área que eu estudo, por exemplo, a Ciência das Religiões, que é a ligação entre mito e linguagem. Então é muito interessante a gente pensar que, sim, tem uma ligação muito forte. O vínculo é inegável. Quando você discute um povo indo-europeu, por exemplo, você levar em conta outros povos indo-europeus com quem eles não tiveram contatos, mas que são classificados como indo-europeus por uma questão linguística, surge muito material interessante para a gente fazer leituras comparativas, semelhanças, surge muita coisa. Então muitas vezes há sim uma herança cultural que parece ter uma afinidade ou alguma correlação com o aspecto linguístico. Ao mesmo tempo em que às vezes a gente nota claramente que certas interações, e, quando eu digo interações, é exatamente isso, são trocas entre dois ou mais povos ao longo da história em eventos culturais, em períodos culturais, histórico-culturais específicos de línguas, de heranças linguístico-culturais completamente distintas, e eles acabam… às vezes não é nem só uma questão de tomando de empréstimo algumas coisas da cultura do outro e emprestando: excede isso, vai para além. Muitas vezes, eles acabam desenvolvendo um tipo, por exemplo, de economia de subsistências pareadas e eles começam a desenvolver, de certa forma, juntos certos aspectos mitológicos, religiosos, espirituais, visões de mundo. Então isso aponta que a interação, o intercâmbio ao longo da história é capaz de diminuir essas fronteiras linguísticas. Então isso é muito interessante.

Leonardo: Uma coisa que eu queria perguntar para confirmar para o ouvinte também: você, uma hora, citou a região de Sápmi. O nome dos povos samis, a palavra, viria dessa questão do nome da região?

Victor: De certa forma, sim. Eu já vou puxar um gancho aqui com uma outra questão. Eu vou chegar a esse ponto da relação entre o nome sami e o nome da região, Sápmi. O que acontece é que, primeiramente, os samis, ao longo da história, nem sempre foram chamados de samis. Então eles eram chamados de lapões. Hoje em dia, o termo é considerado pejorativo, então não se usa mais. Alguns estudiosos do norte europeu, que não são samis, às vezes ainda usam, mas para os samis é ofensivo, e eu vou explicar por quê. Então a primeira coisa: a gente tem o primeiro registro de uma palavra que poderia estar relacionada a essa ideia de lapões. Ela está no trabalho do Saxo Grammaticus, é um trabalho chamado Gesta Danorum, foi escrito entre os séculos 12 e 13, e ali ele usa o termo lap. Então pode estar o começo desse termo, dessa tradição de se referir aos samis como lapões – depois viraria lapões. Então a gente tem a ocorrência da palavra, depois, no islandês, o lap. A gente tem o lapper, no sueco antigo. E a gente tem também a palavra no idioma finlandês, e alguns autores dizem que pode ser que tenha vindo do finlandês, porque no finlandês a gente tem a palavra (inint) [00:17:10]. Então é possível que, desse (inint) [00:17:14] tivesse vindo algo como lap, lapper ou algo do tipo. E o que significa essa palavra? Ela traz duas ideias. Ela traz as ideias de norte e de selvagem, no sentido pejorativo mesmo, daquilo como a gente chama na Antropologia e na História do outro. Então é um outro selvagem, indomável, ameaçador em algum aspecto. Essa carga do outro já está na origem do nome lapão. E depois o termo foi se consolidar na obra chamada Lapponia, do Johannes Schefferus, ali em 1673. Ali se consolidou o termo e nasceu uma tradição acadêmica de se referir aos samis como lapões. Então qual é o problema desse termo? É a carga semântica pejorativa de norte, esse norte ermo, gélido, escuro, e um povo tido por selvagem. É um termo que um outro povo escolheu para eles. Então por si só é muito ofensivo. Acaba sendo xenofóbico. E outro indício de como os samis eram vistos é que, em várias fontes, a começar pelo Tácito. O Tácito, no século I, na obra dele, Germânia, chamou-os de (femi) [00:18:37], e depois, nas sagas islandesas, que foram produzidas, foram compostas desde mais ou menos ali do século 11 até o século 14, usavam os termos (fin) [00:18:49] ou (finnar) [00:18:50], no plural, para se referirem aos samis e algumas vezes aos finlandeses.

Leonardo: Juntava tudo.

Victor: Exatamente. Para os escandinavos, tanto os samis quanto os finlandeses eram outros. E os finlandeses também são dessa família linguística, do urálico, do fino-úgrico, igual aos samis, então era tão incompreensível o idioma deles para os escandinavos quanto os idiomas samis. Tudo era colocado, era visto como a mesma coisa, e essa distinção começou um pouco com o termo scridfin. Então scridfin seria algo como os fins que esquiam, e aí isso se referia aos samis especificamente – isso nas sagas islandesas. Ali que começa alguma distinção. E por que, então, a gente os chama de samis e a área que eles habitam a gente chama de Sápmi? Porque é como eles se autodenominam. Então esse é o nome que a gente chama de êmico, vernacular ou nativo. Então é isso, é um povo, escolhe o seu próprio nome e se reconhece como tal.

Leonardo: Que é a forma respeitosa de se fazer, porque é o próprio povo que está se denominando.

Victor: Sem dúvida. É o critério de identidade. Quando você se recusa a chamar um povo pela forma pela qual ele se conhece, isso é um apagamento identitário doloroso, absurdo. Nas línguas samis, eles se denominam sami ou então sápmelaš. Principalmente os idiomas ali germânicos, do norte, fizeram uma adequação e ficou sami. Às vezes, a gente encontra no inglês a grafia com dois A. E uma coisa que é muito interessante a gente também frisar: eles são vários povos que habitam essa região de Sápmi. Claro que esses vários povos samis têm entre eles idiomas muito parecidos, hábitos culturais muito parecidos e uma série de outras coisas, mas eles não são um povo, o mesmo povo. Essa ideia unificada, homogeneizada de um povo, não é real. Eles são vários povos e têm, sim, cada um deles tem as suas peculiaridades, singularidades, inclusive de idioma. Para a gente ter uma ideia, tem idiomas samis, por exemplo, que são escritos no alfabeto cirílico, enquanto tem outros que têm caracteres parecidos com caracteres que a gente usa nos idiomas ali croatas, enfim, aqueles idiomas da região dos Balcãs. Então as línguas deles são tão diferentes, têm as suas peculiaridades fonéticas, por exemplo, gramaticais, que a gente precisa de alfabetos diferentes, e aí, claro, isso também depende das propostas que houveram de oficialização e sistematização da escrita em cada uma das regiões. É claro que entre os samis que habitavam o norte da Noruega, quando o idioma deles foi começar a ser escrito, isso passa por certas questões; no norte da Rússia, são outras, mas, enfim, existem hoje nove idiomas samis. Infelizmente, todos eles estão em alguma medida ameaçados de desaparecer. Já sabemos de dois idiomas samis que foram extintos, que são o quemi sami e o acala sami – foram extintos. Alguns têm pouquíssimos falantes, então ume sami tem 20 falantes, o pite sami tem 20, o ter sami tem entre dois a dez falantes, e a gente tem alguns que não estão em uma situação tão crítica, mas, sim, sob risco: sami do sul tem 600 falantes, inari sami tem 300, skolt sami tem 420, o quildim sami tem 500 e temos os dois idiomas samis que são os mais falados, que são o sami do norte – tem cerca de 20 mil – e o lule sami, que tem entre mil e dois mil.

Leonardo: Aí você citou a questão das línguas. Algumas já estão extintas, outras têm poucos falantes, mas nisso também se reflete a questão dos povos em si, a quantidade de indivíduos ali também estaria correndo certo risco?

Victor: Não necessariamente, porque o que esses dados mostram para a gente… eles são mais uma questão de apagamento linguístico-cultural, porque o que acontece? Em várias dessas regiões, por exemplo, Noruega e Suécia, os samis que eram escolarizados eram escolarizados em norueguês, eles eram escolarizados em sueco, e claro que principalmente ali no século 19, quando a antropologia racial estava no seu auge, eram tidos como uma raça inferior. A visão racista que imperava era essa, então eles tinham o crânio medido nas escolas, as feições eram medidas, e eles eram proibidos de se socializarem no espaço público e nas cidades falando o seu idioma sami respectivo. Então existem hoje, por exemplo, pessoas de ascendência sami que não sabem o seu idioma, então, por exemplo, a avó sabe falar, mas os filhos não chegaram a aprender. Então, na verdade, é uma grande questão de apagamento cultural.

Leonardo: É, isso tudo que a gente já foi conversando com certeza é novidade para muito ouvinte, porque, de fato, como a gente falou desde o início, isso não é algo muito pesquisado aqui no Brasil. Não se encontra muito sobre isso em si, não se fala tanto, mas, ao mesmo tempo, é muito interessante ver que isso não é algo tão conhecido aqui, apesar de que até agora a gente já viu muitas similaridades com a nossa história, com o território daqui.

Victor: Com certeza. É aquilo, claro que cada contexto é um contexto, e aí tem todas as suas peculiaridades históricas, culturais, sociais, mas tem muita analogia. Todas essas questões de colonização desse grande outro, o apagamento da identidade, tem sim um fio de raciocínio que liga os dois contextos, de certa forma, com certeza.

Leonardo: E até, então, eu fico imaginando que acho que por causa dessa questão de apagamento que se tem, acho que é um dos motivos que pode dificultar também o nosso conhecimento aqui, porque, ainda fazendo um certo paralelo, se os próprios povos indígenas daqui, a gente tem esse apagamento e se perderam algumas coisas, algumas pessoas estão tentando lutar para não se perder totalmente, então imagina algo que é lá da Europa, já em um local mais extremo, uma distância maior. Então acho que isso pode também ser uma das coisas que fazem com que para cá seja bem desconhecido. Talvez até eu chuto que alguns ouvintes possam não conhecer esse termo, samis, a palavra, mas lapões talvez seja mais comum. Talvez quando a gente citou o termo que seria pejorativo, algumas pessoas possam ter reconhecido de já ter ouvido. Eu vou ser sincero, eu não ouço mais tanto esse termo, mas, quando eu era mais novo, eu já ouvi essa palavra, lapão. Por isso que até era a minha dúvida, se era pejorativo ou não, qual era a relação. Então talvez lapão seja uma palavra que as pessoas já tenham escutado, talvez até mais do que samis – quem não está se aprofundando.

Victor: Com certeza. Inclusive, eu acho que mais do que a palavra lapão, as pessoas de repente já tenham escutado a palavra Lapônia. A palavra Lapônia é a mesma ideia dessa palavra Sápmi, a região habitada pelos povos samis. Só que a palavra Lapônia, esse termo de localidade é oriundo do termo pejorativo lapão. Eu já ouvi pessoas falando, por exemplo, que gostariam muito de conhecer a região da Suécia, da Finlândia, que é mais para o norte, que é a Lapônia. Então isso ainda tem uma certa repercussão. E eu já cheguei a ver postagens perto dessa época do Natal, de as pessoas falando… matérias em blogs, artigos de internet, as pessoas falando do Papai Noel ser originário da Lapônia. A gente vê os termos mais ou menos assim. E essa questão racial mesmo, cultural, de enxergar esses povos como inferiores, está inclusive no meio acadêmico. Então muitas produções científicas nos séculos 19 e 20 estudavam os samis e os escandinavos, os vikings, no estudo de mitologia comparada, e aí quais eram os dois argumentos principais? Todas as semelhanças que eram encontradas entre os vikings e os samis ou eram vistas como empréstimos que os samis teriam feito dos vikings, porque, claro, a religião vikings seria indo-europeia, germânica, superior por natureza, bélica, grandiosa, e os samis, um povo indígena, passivo e pacífico, que teriam adotado, teriam feito todos esses empréstimos passivamente dos escandinavos; ou então um outro tipo de olhar que era tão problemático, tão etnocêntrico tanto, só que um pouco mais nas entrelinhas, é que eles enxergavam os povos samis como aquela ideia do povo que se manteve primitivo, aquela coisa do selvagem que se manteve selvagem, não foi civilizado, a cultura não chegou a esses selvagens. Então o que eles faziam? Eles achavam que, para eles conseguirem estudar a cultura vikings, a cultura escandinava na sua forma mais antiga – e aí nós não temos acesso, nós não temos material para isso, não existe, então para a gente saber como os escandinavos eram -, a gente podia estudar os samis, porque eles ainda seriam essa primordialidade, essa primitividade. E isso acaba sendo tão etnocêntrico quanto, tão problemático quanto.

Leonardo: Saquei, como se aquilo lá tivesse ficado parado no tempo.

Victor: Exatamente, que é justamente algo que a gente escuta muita gente falar sobre os nossos povos originários aqui do Brasil, infelizmente. Muito infelizmente.

[Trilha sonora]

Leonardo: Bom, então a gente já começou a citar os estudos, as culturas, as crenças deles, então acho legal a gente se aprofundar um pouquinho mais e falar, de fato, como são as crenças, as religiões, o panteão – a gente vai citar daqui a pouquinho aí mais a fundo cada um… cada um não, porque teria vários, mas pelo menos algumas divindades.

Victor: Para a gente discutir um pouco como eram as crenças, a religião pré-cristã, a mitologia e os deuses dos samis, primeiro, então, é importante a gente manter essa imagem de que eles não eram um único povo, unificado. A gente não consegue falar em a religião sami, a mitologia sami. O tempo todo, a gente tem que manter em mente que essas manifestações religiosas, mitológicas, simbólicas entre os diversos povos samis têm muitos paralelos, com certeza, mas a gente não pode enxergar essas manifestações como sendo uma ideia de um sistema fechadinho, sistematizado, coeso, enfim, algo padronizado, porque, se a gente trata a religião sami como sendo uma coisa monolítica, pura, a gente vai estar trabalhando com uma abstração que não encontra respaldo no que a gente observa, nos materiais. Então, quando a gente está pensando isso tudo, a gente tem que pensar que há duas regras: a primeira é a variação e a outra é a dinamicidade. Tem que enxergar esses símbolos sempre como circulando ou trocando-se com outros povos ou mudando com o tempo, ou então se ressignificando, sendo renegociados, e isso é uma constante, principalmente em religiões como as religiões samis, primeiro porque elas são da oralidade, então, ou seja, os mitos, as visões de mundo, enfim, não eram registradas em uma escrita, qualquer que fosse. Então tudo isso, a (vida) [00:31:38] religiosa circulava 100% na oralidade. E isso a gente sabe, favorece muito a variação. Outro fator que favorece é que não havia uma instituição oficial da religião entre esses povos, não havia autoridades centrais que eram religiosas, encarregadas do culto. A gente tem, claro, a figura dos especialistas rituais, mas isso, nesse caso, como por exemplo o caso do xamã, não significa que eles eram autoridades religiosas centrais, que dizem o que era certo e o que era errado dentro daquela religião ou dentro daquela visão de mundo. Isso não acontecia. Então a gente está lidando com manifestações religiosas que não tinham dogmas, não tinham livros, não tinham autoridades religiosas centrais, então isso tudo favorece uma vida religiosa com mais fluidez. E o que a gente observa, alguns traços? Primeiro que as religiões samis se enquadram em um tipo de religião que a gente chama de religião étnica, ou alguns autores chamam de religião primária. O que isso significa? Significa que elas são religiões que acontecem em uma sociedade, em um tipo de sociedade em que não há separação entre o que é religião e o que não é. Então o que é religião e o que é, por exemplo, lei; o que é religião e o que é política; o que é religião e o que é economia; ou qualquer coisa que seja. Tanto é… a religião está tão intrínseca à sociedade ali como um todo que não existem nem palavras para ideia de religião, porque não se precisa denominar aquilo que você não precisa destacar de outras instâncias sociais. Então, ou seja, quando você nasce nesse tipo de religião, não há a opção de você não pertencer àquela religião ou de você ser, vamos colocar assim, um não crente daquela religião ou escolher outra religião. Não existe, é simplesmente inconcebível. E o que mais que tinha de traços? O politeísmo, ou seja, a crença em diversas divindades, inúmeras divindades. Uma coisa interessante, sempre que a gente discute religião, a gente discute modelos. Às vezes, a gente está acostumado a conhecer uma religião nova e a gente está muito acostumado com o modelo indo-europeu de religião, que é o quê? É pensar na importância, é atribuir uma importância, uma superimportância às divindades, aos deuses, e nem sempre eles são mais importantes do que outras entidades, e é o caso das religiões samis. A gente percebe que inúmeros outros seres sobrenaturais, enfim, entidades, têm tanto impacto na vida do homem quanto deuses. Espíritos guardiões, por exemplo, da correnteza de um rio, o espírito de uma floresta, o espírito de uma árvore, o espírito de uma pedra, o espírito de uma rena, eles tinham um impacto completamente imediato na vida religiosa dos samis. Então é muito legal a gente manter isso em mente. E justamente isso tem muito a ver com essa ideia que a gente chama de animismo: é a percepção de mundo de que todas as coisas têm vida, vamos colocar assim, uma alma, um espírito, então não são só os humanos que têm alma, ou então só os humanos e os animais que se movem, que a gente vê que respiram, que têm sangue etc., que são tidos por seres. Então a pedra é um ser que tem vida, que tem espírito. A correnteza, o vento, a árvore, a folha. Então essa noção de mundo acredita no mundo vivo, vamos colocar assim, dessa forma. E, por fim, uma questão muito interessante, que é o xamanismo. O xamanismo era uma instância inseparável da vida religiosa dos povos samis. O xamanismo infelizmente é um termo que está sendo muito mal utilizado e explorado muito negativamente hoje em dia, com fins mercadológicos, com apropriação cultural etc. Mas o que a gente está chamando de xamanismo aqui? Esse xamanismo étnico que está nas religiões desses povos é aquela visão de mundo segundo a qual os outros mundos influenciam e estão constante comunicação com o nosso mundo, e existem especialistas religiosos que conseguem transitar entre os diferentes mundos para resolver, de repente, mazelas da comunidade, problemas com pesca, com plantio, com caça, ou então transportar um recém-falecido e sua alma para o mundo dos mortos, ou então curar doenças que tenham sua origem no outro mundo. Então essa visão de mundo, essa ideologia xamânica de vários mundos, geralmente em camadas – são vistos em camadas -, e a comunicação entre esses mundos sendo feita pela figura do xamã é o que, grosso modo – muito grosso modo -, caracteriza a presença de xamanismo na sociedade, e isso ocorria entre os povos samis. O xamã era a figura do noaidi e o xamanismo era chamado (inint) [00:36:57] e todo esse complexo de visão de mundo xamânica presente entre os samis, isso forma, de certa maneira, um esqueleto das religiões samis.

Leonardo: Sim, interessante. E aí eu fiquei também com uma dúvida: no momento que a gente falou das línguas, você citou que estavam, algumas, extintas, outras têm poucas, e a questão da parte de crenças? Isso também estaria se perdendo nesse apagamento cultural ou talvez já tenha se apagado? Isso que eu queria entender, como está atualmente, como que se vê isso.

Victor: Os samis, grande parte deles, estão na Escandinávia, que é fortemente luterana, e os samis foram alvo de um processo de cristianização, de missões principalmente luteranas, no começo da Idade Moderna, com impacto decisivo, de uma maneira irreversível. Então claro que hoje em dia a gente tem comunidades e povos samis que sabem de certas lendas, folclores, conhecimentos antigos de seus antepassados – esse material cultural não morreu especificamente -, mas eles não se envolvem com ele como sendo algo religioso, como sendo a crença religiosa deles. Mas existem, sim, ao mesmo tempo, movimentos de se tentar trazer de volta esses conhecimentos, essa religião antiga, justamente como uma bandeira de identidade, e aí, nesse caso, a gente tem até samis que tentam trazer de volta as práticas xamânicas de seu povo, e aí, nesse caso, a gente chama de neoxamanismo, e aí esse resgate sendo feito como uma prática cultural atrelada à importância de identidade, vínculo cultural etc. São movimentos pontuais, de certa forma. Nós temos grupos de samis que fazem suas vestimentas, eles tentam resgatar a vestimenta tradicional, com o simbolismo tradicional, original e o direito de usá-la sem discriminação. Temos algumas manifestações disso, contemporâneas. Também tem aquelas situações em que a medicina tradicional da região ainda faz uso, por exemplo, de ervas que a gente sabe que xamãs do século 17 usavam. Então tem uns resquícios dessa forma.

[Trilha sonora]

Leonardo: Bom, acho legal agora a gente, então, já citar algumas das divindades. A gente começou a falar das crenças. Apesar de a gente já ter mostrado que a forma que se vê as divindades em relação a outros seres é um tanto quanto diferente de outras culturas, mas é legal mostrar, então, quem são esses seres, e a gente vai poder chamar alguns pelo menos de divindades. Mas, até antes de falar das divindades, uma coisa realmente: eu não encontrei muitas narrativas. Na verdade, eu não encontrei nenhuma narrativa mesmo referente a esses seres; foi mais algumas especificações, que é bem comum. quando você vai estudar mitologia, mesmo que por alto, de falar: “Tal deus é deus disso; outro deus é deus daquilo”. Você encontra mais isso mesmo, e mesmo assim também não se encontra uma lista tão extensa.

Victor: Sim, pois é, eu vou te responder isso até voltando um pouco em uma outra questão que a gente focou, que é a dificuldade de estudar e pesquisar sobre os samis aqui no Brasil e também como um todo. Qual é o cenário que a gente tem? Tudo que chegou até nós nos dias de hoje sobre a religião ou a mitologia ou outras práticas samis pré-cristãs, todos os materiais que chegaram foram escritos por pessoas que não eram samis. Então esse é o primeiro problema. Então nesse problema a gente tem etnocentrismo, a gente tem demonização, a gente tem alteridade, então grande parte dos materiais descrevendo os samis foram escritos, por exemplo, por missionários noruegueses no século 17. Então você imagina um missionário norueguês luterano escrevendo sobre um ritual – tudo com uma carga muito pejorativa. Às vezes nem é tão explícito, tão claro, mas está ali. Então tudo que a gente tem sobre os samis é o que a gente chama de materiais feitos por outsiders, pessoas de uma perspectiva estrangeira que estavam olhando ali a manifestação do outro. E, claro, estavam olhando a manifestação do outro colocando o outro em um lugar de inferior, de praticante de artes demoníacas, povo fraco, doente, enfim, e aí a gente tem inúmeros problemas. Essa é uma grande dificuldade de a gente pesquisar sobre a cultura sami. E, aqui no Brasil, o problema específico é que a gente não tem material em português. Eu tenho um artigo escrito; tem um colega do meu grupo de estudo, do NEVE, o Vítor Menini. Ele escreveu o mestrado dele em História sobre o Johannes Schefferus, que escreveu essa obra Lapponia, em 1673. Tem a dissertação dele disponível, vai sair em breve o livro. E nós temos, fora isso… eu escrevi dois verbetes, um sobre a religião sami e outro sobre a mitologia sami, no Dicionário de História das Religiões na Antiguidade e Medievo, aí ali tem dois verbetes. E isso é tudo que a gente tem em português basicamente. Ou seja, a gente não tem uma tradução ainda desses estudos no Brasil. Os livros que você precisa, muitos você não acha na internet e são caríssimos. Qualquer um que queira estudar, que queira ter acesso a esses materiais, vai se deparar com materiais que foram escritos por estrangeiros, por cristões, muitos tardios, e isso tem tudo a ver com essa questão das divindades, como você disse. Ao contrário, por exemplo, da mitologia escandinava… na mitologia escandinava, os materiais chegaram até nós hoje, eles têm muitas narrativas, tem histórias do Thor, histórias de Odin, Freya, Frigg, Loki, enfim, a gente tem muito material narrativo. O próprio caso do finlandês, que também estava ali ao lado dos samis e dos escandinavos, tem semelhanças linguísticas e culturais com os samis. A gente tem narrativas mitológicas finlandesas; e, no caso dos samis, a gente não tem narrativa, então, uma história em que tal deus fazia alguma coisa, enfrentava tal problema, ou um herói mitológico que fazia tal coisa. Não, a gente não tem. Isso torna tudo mais difícil. Mas vamos lá. Esses materiais, apesar de problemáticos, descreviam deuses: as divindades que os samis pareciam cultuar, realizar oferendas e coisas do tipo. E, claro, também é importante ressaltar: cada uma dessas divindades pode ter nomes completamente diferentes, se a gente comparar uma região com a outra. Elas podem ter variações que não são tão diferentes assim, ou então, de repente, a gente esteja diante de um deus que existe em uma religião e não existe na outra. Então é sempre bom manter isso em mente. E também fazendo a ressalva de que, quando vai estudar mitologia, como você bem falou, a gente tenta sistematizar o panteão divino, como é: é uma família de deuses que operava de tal maneira, tal deus fazia isso, o outro fazia aquilo, cada um tem uma área de regência determinada. Mas nem sempre esse panteão divino é sistematizado dessa forma, então às vezes a gente tem uma divindade, por exemplo, que é a divindade das águas, e nem sempre, quando você ia cruzar o rio, você fazia uma oferenda para essa divindade – você podia fazer para outra. Por exemplo, você podia cruzar o rio em um barco e não fazer oferenda para a divindade da água, mas para a divindade do vento. Enfim, coisas do tipo. Mas, vamos lá, a gente tem primeiro o deus Veralden-radien, que tem variações no nome, Veralden-olmai, e em algumas regiões ele recebe o nome de Radien-olmai. O nome dele significa algo como regente silencioso. Uma noção interessante entre os samis, que ele é uma espécie de deus supremo, de alguma maneira seria encarregado do surgimento do universo, da ordem cósmica, de como as coisas estão e funcionam, e, uma fez feito isso, ele se ausentou e ele não tem mais um impacto na vida dos homens. Então não há muitos cultos, não há muitas oferendas a esse deus, embora ele seja tido como deus supremo. Então o papel dele teria sido mais em um passado. Ele não está preocupado com os assuntos humanos, então você apelar a esse deus é, de certa forma, inútil.

Leonardo: Achei interessante quando eu vi desse deus, essa questão de ele ter criado tudo ali, mas estar distante, porque em outras culturas, e culturas distantes, não poderiam nem ter tido contato nenhum ali, também tem alguma coisa assim. Porque acho que a gente é acostumado com um pensamento cristão, talvez, poderia se dizer assim. A gente imagina: o deus criou, ele está ali sempre influenciando. Teria um deus só, então ele ficaria ali. Agora, em outras culturas, na África a gente tem alguns povos assim. Fazendo um exercício aqui de mitologia comparativa, na África a gente tem alguns povos que também têm criador e, depois, ele se distancia. Isso eu acho interessante, ver essas comparações.

Victor: É sempre interessante, porque mostra para a gente outros modos possíveis de se relacionar com o deus supremo. Traz riqueza para o nosso olhar, para a gente ver como não existe regra quando o assunto é religião ou manifestações religiosas, enfim, é incrível. É um exercício muito válido. Bem, partindo para algumas outras divindades, a gente tem Biegga-almmái, estava relacionado aos ventos. Então ele era especialmente importante para os samis da região costeira, para quem o vento é muito importante na pesca e transporte entre rios etc., até porque os samis não foram grandes navegadores, como os vikings, por exemplo, mas tinham embarcações com outras tecnologias menores e focadas na pesca. Então esse deus, o Biegga-almmái, era muito importante para eles e também para os samis habitantes de montanhas, para quem o vento ajuda muito no degelo, para as árvores começarem a aparecer, o solo começar a ter um pouquinho de vegetação rasteira etc., e as renas, que são incrivelmente importantes para a economia e para o modo de vida samis, poderem pastar. O vento era uma entidade muito importante. Aí o próximo: a gente tem um deus que era relacionado mais especificamente às águas, às correntezas e rios, lagos etc., que era o Cáhceálmmái. Ele aumentava a sorte também na pesca especificamente. Ele era um deus importante para os samis da região também costeira. Havia uma tendência de os deuses homens estarem relacionados a essas forças e aspectos da natureza. De certa forma, era um padrão. A gente tem o deus encarregado também da questão da fertilidade, e aí a fertilidade está também relacionada à procriação das renas, que, como eu acabei de falar, eram importantíssimas, que era o deus Waralden-olmai. E ele era importante na fertilidade não só nesse papel de procriação das renas, mas ele era o responsável por conferir alma para os humanos recém-nascidos. Então no momento ali próximo do nascimento ao parto, ele que era encarregado de enviar uma alma para o recém-nascido. E também, em algumas tradições, ele mantinha alguns traços de deus supremo.

Leonardo: É, porque o próprio nome dele, você vê uma certa similaridade com o primeiro que a gente falou.

Victor: Exatamente. A gente tem uma divindade encarregada dos trovões e das chuvas, que era o Horagállis ou Hovregállis, e ele recebe inúmeros outros nomes em outras regiões. Também é chamado de Tiermes Aijeke, e ele era uma divindade dos trovões e das chuvas, então também estava um pouco relacionado à fertilidade, mas no sentido do pasto, e ele também tinha alguns traços de um deus protetor. Ele era encarregado de expulsar espíritos malignos, combater espíritos malignos, protegendo os homens, mas ele também era visto como um deus a ser temido. Então era uma relação de certa ambígua: ele era um deus protetor, mas ele precisa ser abordado com cautela, porque ele também podia se voltar contra os homens.

Leonardo: Você chegou a estudar sobre ele? Porque você falou que você tem a pesquisa de deuses do trovão.

Victor: Eu o estudei no meu mestrado. Na minha dissertação, tem um capítulo sobre ele, inclusive discorrendo algumas semelhanças com Thor, porque o Thor, um grande traço dele é ser o campeão protetor dos deuses e homens.

Leonardo: Esse aí expulsaria espíritos malignos; o Thor estaria enfrentando monstros e gigantes.

Victor: Exatamente, é uma grande analogia. E, por incrível que pareça, o deus Horagállis tem um vínculo muito mais claro com os raios e trovões do que o Thor tem. O Thor, na maioria esmagadora dos materiais, e isso é uma coisa que eu defendo na minha dissertação, não tem qualquer vínculo entre ele, os raios e os trovões. O que se destaca dele, na verdade, é uma força sobre-humana, uma força hercúlea, e assim ele mantém o mundo seguro matando os gigantes. Mas os vínculos deles com os raios e trovões são fracos. Quem depois quiser saber um pouco mais sobre isso, eu tenho vários artigos acadêmicos publicados sobre essa questão do Thor e a fraqueza dos vínculos dele com o raio e o trovão. Quem se interessar, tem o meu perfil no academia.edu com os artigos lá sobre isso. Bem, o próximo é um deus relacionado sobretudo à caça, e aí, quando a gente diz que ele está relacionado à caça, ele era encarregado de controlar os animais, e aí controlar no sentido do quê? De ajudar os samis a conseguirem uma caça, o alimento, mas vai para além disso: ele era encarregado de fazer com que os animais voltassem. Ou seja, uma vez morto um animal, a alma dele precisava fazer uma passagem adequada para o outro mundo, ser preservada no outro mundo para, depois, esse animal voltar para esse mundo aqui nosso. Quando essa ordem era abalada? Quando começava o quê? Escassez.

Leonardo: Interessante isso aí. Tinha falado do animismo, de toda a importância geral não só para o homem e tudo. Em muitas outras culturas, você tem essa questão de: morreu, mas tem que ter uma passagem digna – voltada para os humanos. Nesse aí, também tem todo um cuidado para os animais. Esse deus que vai cuidar para que os animais voltem numa boa depois da caça.

Victor: Exato, e é por isso que muitas vezes a caça tinha que ser ritualizada. Inclusive, não só pré-caça, não só antes de sair para caçar, como também depois, quando retornava com a caça, com o animal já morto. Ele não podia ser preparado para a refeição diretamente, porque senão você poderia danificar a alma ao invés de danificar só a carne. E aí teria um problema, que depois ele não retornaria ou não retornaria adequadamente, e aí começaria a ter escassez. Muito interessante. E esse deus da caça é o Leaibealmmái. E, por fim, temos um deus que era o deus completamente temido, que era o Rohttu, que ele era tido como extremamente poderoso e ele representava tudo que era, de alguma forma, ameaçador para a vida dos samis. Então ele estava conectado à doença, ao frio, ao escuro, a noções de submundo, então tudo isso, falta de luz, falta de calor, escassez de comida, doença, mazela, problema.

Leonardo: Põem-no como um deus temido, mas, como não temos narrativas, a gente fica naquela coisa: será que haveria confronto com os outros deuses, como é comum de se encontrar em outras culturas? Mas a gente acaba não sabendo, a gente simplesmente tem essa descrição em si.

Victor: Pois é, exatamente. Então a gente fica com o conhecimento limitado sobre a atuação dele, porque o que a gente sabe, por exemplo, são materiais que falam: “Olha, os samis de tal região acreditam que, se eles morrerem de tal forma e a alma deles não foi ritualizada, transportada pelo xamã de tal jeito, eles vão acabar indo para o submundo do deus chamado Rohttu, que é o mundo de…” aí descreve, e é isso, é tudo que a gente sabe. Então realmente as narrativas mitológicas fazem muita falta. Outro aspecto interessante: a gente tem também uma deusa do submundo, que era Jábmiidáhkká. Também temos poucos materiais sobre ela. Inclusive, é difícil delimitar se o submundo que ela rege é o mesmo submundo que o Rohttu rege.

Leonardo: Tem alguma descrição do submundo deles, falando como seria, se é de gelo, de fogo, alguma coisa assim?

Victor: Essa noção de fogo não tinha.

Leonardo: É, dei só como exemplos.

Victor: Ah, sim, pois é, na mentalidade de um povo como os samis, por exemplo, o que pode ser mais ameaçador, o que pode ser pior é o submundo que é gelado e frio, por conta da região que eles habitam. Então o sol era muito aguardado, e, como você deve imaginar, o sol some por um grande período no extremo-norte. Então a ideia de submundo era descrita como um lugar escuro e gelado, frio, ermo, e tem uma ideia uma pouco assim: os habitantes seriam mortos, mas essa ideia de mortos por doença, mas são alusões. A gente não tem uma descrição detalhada. Mas o que a gente sabe é que, de fato, havia mais de uma concepção de submundo. Os materiais mencionam submundos diferentes. O que é engraçado notar é justamente essa importância do sol. A gente ouve muito por aí que o sol e as divindades solares são muito masculinas, porque o que acontece? Entre os samis, assim como entre os escandinavos também – entre os escandinavos, o sol era uma divindade feminina -, essa deusa encarregada de trazer o sol, trazer o calor, trazer a luz, algo que era muito importante para eles, era uma deusa, uma mulher, chamada Beaivvi, enquanto que, por outro lado, o deus da lua era homem, era uma divindade masculina, que era o Mánnu. O que é interessante? Muito provavelmente, essas duas divindades não tinham uma regência, não tinham atitudes de deuses propriamente ditos, eles eram mais como se fossem seres cósmicos personificados, enquanto que essa atuação mais divina, um pouco mais direta, do modo de um deus, era feita pela deusa Áfruvvá – protegia das tempestades, avisava sobre o clima e podia operar ali de um modo a trazer um clima mais favorável. Na região de Sápmi, toda essa região habitada pelos samis, clima mais favorável significa mais sol, mais luz, mais calor, degelo. Aí começa, com o degelo, a ter pasto e comida para as renas. E, assim, é o almejado. Bem, por fim, a gente tem uma série de divindades que, na verdade, são uma deusa-mãe e suas três filhas. Essa deusa é como se fosse uma deusa-mãe ancestral, então ela tem um status, de certa forma, elevado, que é a deusa Máttaráhkká. Ela tinha um papel relacionado às questões realmente que regiam o mundo feminino e ela era tida por muito poderosa de uma maneira ampla dentro da sua atuação, então fertilidade, maternidade e coisas, feitos que eram atribuídos às mulheres, afazeres que eram atribuídos às mulheres. E as filhas dela têm uma presença mais delimitada, mais específica, e aí a mais interessante é a Sárahkká. Era uma deusa da fertilidade mesmo, no sentido de ajudar uma mulher a engravidar, manter a gravidez, levar a gravidez adiante, mesmo em situações complicadíssimas, ermas. E também, claro, assegurar um parto seguro. Em seguida, a gente tem Juksáhkká – o nome dela significa deusa do arco. Tem uma relação em alguns materiais com a caça, por isso o arco, mas isso é discutido, porque é como se ela fosse uma deusa a quem você pudesse apelar, a quem o sami pudesse apelar para que a criança que fosse nascer fosse do sexo masculino, e aí alguns estudos defendem que é por isso que essa deusa tinha um arco, porque o arco representa a atividade da caça, que era uma atividade masculina. Então tem essa probabilidade. Talvez ela atuasse nessa questão de definir o sexo. E, por fim, a deusa Uksákká, que o nome significa mulher da porta. Então, nas habitações samis, que eram chamadas de kota, acreditava-se quase que literalmente que ela ficava habitando as portas e ela atuava como se fosse um selo protetivo do bem-estar da família, daquela casa, daquela habitação, e mantinha todo mundo em segurança e também sob essa regência feminina, então todos os afazeres domésticos que estavam a cargo das mulheres, ela estava ali como uma representante e também uma guardiã desses afazeres, dessas atitudes. E, por fim – não esgotei uma lista aqui de divindades. Como eu disse, há diversos materiais. Muitos materiais às vezes só mencionam o deus uma vez, por exemplo, e aí nenhum outro material menciona esse deus. Isso não necessariamente significa que esse deus não tenha existido naquela região, mas de repente que ele só era conhecido naquela região. Então temos várias outras divindades, e é muito possível que, por exemplo, um povo sami entrando em contato com outro povo sami não teria grandes problemas para conhecer as divindades do outro e passar a incluí-las também na sua religião. O tipo de religião dos samis permitia isso com muita fluidez, então tem tudo isso também.

Leonardo: É algo bem maleável, não é?

Victor: Exatamente.

[Trilha sonora]

Leonardo: Bom, foi bem legal mostrar no episódio que falta informação, muita coisa a gente tem superficialmente, não tem as narrativas em si. A gente ainda assim conseguiu mostrar uma listagem, pelo menos, de divindades, mas eu acho mais legal ainda ter mostrado o quanto isso se liga com esses povos – não esse povo em si, esses povos. Tem que mostrar bem isso, que são vários. E como os problemas que eles passam em si, essa questão de estarem perdendo a cultura, de um apagamento cultural, a gente encontra também em outros locais do mundo, em outros povos aqui mesmo também. E junto também com uma analogia do estilo de vida, dos ideais, essa questão xamânica, animista. A gente encontra isso em vários locais; o apagamento cultural também se encontra em vários locais. Então você vê como que a gente vê paralelo isso. E tentar não ter mais esse apagamento, amenizar ao máximo, apesar de que muita coisa já está perdida, mas tentar segurar ao máximo as informações que a gente conseguir ter disso. Victor, muito obrigado, você deu uma puta aula, tanto que eu interrompi o mínimo possível, porque você estava falando bastante informação. Achei muito legal, principalmente porque, de novo, a gente tem pouca informação aqui em português, então acho legal divulgar isso. E agora é contigo, pode fazer alguma consideração final que tenha e pode também já falar dos contatos, caso o ouvinte fique interessado pelas suas pesquisas, onde te encontrar. Se tiver redes sociais também que queira passar, fique à vontade.

Victor: Leonardo, eu que agradeço o espaço, a oportunidade. Eu dou muito parabéns pela sua iniciativa de trazer essa discussão, trazer a questão dos povos samis, ter me convidado, ter me dado esse espaço e a gente levar uma conversa aqui um pouquinho sobre a mitologia, a religião, a cultura dos povos samis e apresentar isso para o pessoal aqui do Brasil, porque as pessoas… muitas vezes é isso, nunca ouviram falar. A gente vê isso acontecendo até com povos que são muito mais conhecidos, como os vikings. Às vezes a pessoa se interessa, quer estudar, ou que não seja estudar academicamente, mas quer conhecer, quer se aprofundar, e não sabe por onde começar ou não sabe onde procurar, não sabe o que é. Infelizmente, às vezes a gente acaba achando umas leituras ruins por aí. Então é muito legal ter esse espaço para ter um papo de qualidade e que seja uma apresentação instigante, que seja um convite para que as pessoas passem a estudar isso ou conhecer de qualquer forma, qualquer que seja o modo como o assunto toque cada um. Eu deixo aqui o meu contato. Eu tenho um perfil no academia.edu, só colocar o meu nome, é Victor – Victor com C – Hugo Sampaio Alves. Todos os meus trabalhos estão lá, só não estão lá meus capítulos de livros, mas meus artigos estão todos disponibilizados lá. Também quem quiser entrar em contato pelo Facebook, procure o meu nome lá, pode me adicionar. É um prazer ajudar, trocar ideia, trocar figurinha. A gente falou aqui sobre os povos samis, mas eu estudo os povos samis, os povos finlandeses e os escandinavos. Então no que eu puder ajudar, trocar ideia, passar material, indicar livro, é um grande prazer. Eu tive pessoas me ajudando nesse sentido e, para mim, é uma alegria poder agora devolver ajudando todo mundo que queira, que precise. E queria indicar também o nosso grupo do NEVE. A gente tem grupo no Facebook, tem um canal no Instagram, a gente tem canal no Youtube e a gente produziu já três dicionários. A gente tem o Dicionário de História e Cultura da Era Viking, a gente tem o Dicionário de Mitologia Nórdica e a gente tem, organizado também pelo professor Johnni Langer, o Dicionário de História das Religiões da Antiguidade e Medievo. Inúmeros professores e pesquisadores falando desde mitologia egípcia, romana, escandinava, hindu, até mitologia eslava, sami – como eu disse anteriormente, eu tenho um verbete sobre mitologia sami, outro sobre religião sami -, escrevi sobre religião finlandesa, mitologia finlandesa. Então é um material que eu sempre indico. E me coloco à disposição. Sempre um prazer qualquer contato. E eu espero de coração que a questão estudo dos povos samis venha com mais força para o Brasil e a gente possa começar a dialogar com as nossas próprias produções aqui. E eu também espero de coração que surjam mais números do seu podcast sobre inúmeras outras culturas, povos, e, como você disse, a gente precisa muito disso porque há sempre analogias com apagamento de identidade, apagamento cultural, apropriação cultural. A gente nunca precisou tanto quanto agora estar com os olhos abertos para a gente perceber outras visões de mundo, outros povos, outras realidades e outra maneira de se engajar com o mundo ao nosso entorno. Então isso que você faz é um trabalho muito rico. Deixo aqui meus parabéns, espero que continue com prosperidade.

Leonardo: Obrigado. E, realmente, a forma como você finalizou é extremamente importante. Então, ouvinte, espero que você esteja refletindo sobre isso, mas também espero que você, ouvinte, tenha aproveitado o episódio, conhecido uma cultura, novas divindades que realmente são desconhecidas. Então espero que tenha aproveitado.

[01:09:09]

(FIM)