Vitrine do Papo Lendário 228, onde mostra parte de uma pintura com Páris e Helena, ele sentado olhando para ela por sobre os ombros, e Helena apoiada sobre o ombro dele.

Papo Lendário #228 – Páris e Helena

Nesse episódio do Papo Lendário, Leonardo entrevista Paloma Betini, sobre o mito de Páris e Helena.

Conversamos sobre a complexidade desses personagens, suas origens e toda a importância que eles possuem na Guerra de Tróia, um dos principais eventos da mitologia Grega.

Veja como outros autores antigos, além de Homero, representaram Helena e Páris.

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— EQUIPE —

Pauta, edição: Leonardo
Locução da abertura: Ira Croft
Host: Leonardo
Participante: Paloma Betini

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Contatos da convidada:

Academia.edu
Construções e contradições de um herói homérico: imagens de Páris/Alexandre na Ilíada
Grupo Panastér

— Agradecimentos aos Apoiadores —

Alan Franco
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Aline Aparecida Matias
Ana Lúcia Merege Correia
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Eduardo Oliveira
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Everton Gouveia
Jeankamke
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Marcia Regina M. Garcia
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Paulo Peiker
Rafael Resca
Rafa Mello
Rosenilda A. Azevedo
Surya Namaskar
Talita Kelly Martinez
Willian Rochadel

— Transcrição realizada por Amanda Barreiro (@manda_barreiro)

[00:00:00]

[Vinheta de abertura]: Você está ouvindo Papo Lendário, podcast de mitologias do projeto Mitografias. Quer conhecer sobre mitos, lendas, folclore e muito mais? Acesse: mitografias.com.br.

[Trilha sonora]

Leonardo: Muito bem, ouvinte. No episódio de hoje, vamos falar de um dos casais mais famosos da mitologia grega, senão o mais famoso, já que foram os responsáveis pela Guerra de Tróia, um dos principais eventos dessa mitologia. Quem conhece já sabe que eu estou falando de Helena e Páris, e focaremos em alguns dos diversos aspectos deles, já que a convidada de hoje tem pesquisas e trabalhos sobre eles. Então, Paloma, muito obrigado por ter aceito o convite e fique à vontade para se apresentar para o ouvinte.

Paloma: Muito obrigada, você, Leonardo, pelo convite. Eu estou muito honrada, muito feliz de poder falar sobre algo que eu estudo e que eu adoro. Eu sou completamente apaixonada por mitologia, por poesia grega – esses dois personagens principalmente me atiçam a curiosidade, me fazem pesquisar. Então é muito legal poder aqui compartilhar com vocês um assunto que me anima tanto.

Leonardo: Que legal. E as suas pesquisas, como estão? O que você já produziu? Como está o andamento disso sobre esse tema?

Paloma: Bom, eu estou estudante de graduação, já estou no final – se tudo der certo, eu me formo esse semestre em Letras, na Universidade de São Paulo. Oficialmente, eu só faço Português, porém já faz uns quatro anos que eu pego muitas optativas em língua grega e fiz pesquisa na área de literatura grega, então eu digo que, por puxadinho, eu também sou do grego. Mas então eu fiz uma iniciação científica, que é tipo uma pesquisa, é o início, de você começar a fazer uma pesquisa acadêmica em alguma área, e eu fiz sobre Helena e Páris na poesia mélica, grega arcaica, sob orientação da professora Giuliana Ragusa. E foi uma pesquisa que eu estudei 14 fragmentos de poemas de cinco poetas diferentes de um gênero chamado mélica, e agora, quando eu terminar a minha graduação, eu estou pretendendo partir para o mestrado, em que eu vou pesquisar principalmente o Páris, que é um personagem um pouco polêmico.

Leonardo: É interessante falar das polêmicas, então.

Paloma: Sim, pois é, a gente vai falar. E eu também tive a oportunidade de participar de alguns congressos já falando sobre a minha pesquisa e também tive uns artigos publicados, então, quem se interessar…

Leonardo: Interessante você ter citado a questão de ser de Letras, porque, ouvinte, como você já deve ter visto em alguns outros episódios que a gente lançou recentemente, a gente está apresentando pessoas dessa área para mostrar que realmente mitologia abrange várias áreas. Algumas pessoas estão acostumadas a ver mitologia vindo com um quê mais histórico, de quem estuda a parte de História antiga, mas a parte de Letras acaba pegando também. Então, ouvinte, você vê como que mitologia pode ser abrangente.

Paloma: Sim, isso especialmente falando de mitologia grega, porque era uma cultura letrada, então grande parte dos mitos vem pela poesia, vem pelo teatro, pela épica, pela mélica, como eu citei, enfim. Então a poesia é a maior transmissora dos mitos que a gente conhece da Grécia. Então o papel do pessoal das Letras é muito importante. Mas é claro, até disse anteriormente, é importante que nós da área, que estudamos a Antiguidade nos juntemos, não fiquemos cada um preso na sua caixinha, porque, afinal, História e poesia, nessa época, são inseparáveis praticamente. Então para a gente não faz muito sentido ficar cada um estudando só nas caixinhas, a gente tem que conversar, a gente tem que dialogar. Isso é muito importante.

Leonardo: E uma coisa que eu também agradeço ao pessoal de Letras que muitas vezes algumas obras a gente não tem traduzidas em livros publicados, e às vezes você encontra trabalho acadêmico com essa tradução. Isso é ótimo.

Paloma: Isso é um trabalho muito importante, inclusive para o pessoal de outras áreas terem acesso, já que é muito difícil pessoas aprenderem grego. É uma língua muito difícil, que precisa de uma dedicação que a maioria das pessoas não tem como dispor. É uma coisa que está cada vez crescendo… por exemplo, Homero, que é o poeta maior da Grécia – não tem jeito – já recebeu umas três ou quatro traduções nessas últimas décadas para o português brasileiro, então a gente está bem ativo e isso é muito bacana. Eu acho que, quanto mais traduções, melhor.

Leonardo: Bom, falando do foco das suas pesquisas, o que te chamou atenção para pesquisar isso? Porque você começou com Helena, e foi em diversos poetas que trataram dela, mas você já falou que está agora pesquisando Páris. Então está tudo ali próximo. Por que da sua vontade de pesquisar sobre os dois?

Paloma: Bom, eu comecei a me interessar pela literatura grega no meu primeiro ano de faculdade. A gente tem, na USP, um ano chamado ciclo básico, em que a gente vai fazer matérias que são a base dos estudos de Letras, e, dentre essas matérias, existe a Introdução aos Estudos Clássicos, em que a gente vai ler um dos cantos da Ilíada, um canto da Odisseia, mesmo para a gente ter aquela noção básica que todo mundo tem que ter. Então, quando eu tive essa disciplina, eu fiquei apaixonada. A personagem que me chamou mais atenção foi Helena, principalmente, porque, para aqueles que já leram Ilíada, sabem que a Helena é uma personagem muito ambígua e muito complexa, então você se envolve muito com a personagem, porque você não sabe se ela é culpada, se ela não é, se ela é traiçoeira ou não, então você se envolve, e eu percebi, à medida que eu ia lendo mais, eu via como os poetas aproveitavam essa ambiguidade de Helena de acordo com as suas intenções. Então para alguns poetas ela era mais culpada; para outros, ela era mais inocente. Então isso ficava na minha mente: “Meu deus, eu quero pesquisar, eu quero entender essa complexidade”. E aí, bom, eu não sou a única: em dois mil anos, quase três mil anos muitas pessoas já pesquisaram sobre Helena, e aí a minha professora, a Ragusa, falou: “Olha, eu acho que seria interessante a gente não olhar só Helena, mas também o casal”. Então fazer um trabalho sobre o casal Helena e Páris, e aí foi assim que eu acabei incrementando Páris, primeiramente meio a contragosto, porque eu não gostava dele como personagem, mas depois eu comecei a gostar. Eu falei: “Nossa, na verdade, ele também é tão complexo quanto Helena”. Ele só não aparece tanto na Ilíada, mas ele também é um personagem a trabalhar, porque, da mesma forma que nós não podemos definir uma responsabilidade total a Helena, também não podemos a Páris. São personagens muito interessantes, e por isso que isso me tocou muito. E eu acho que eles são personagens muito férteis para se trabalhar uma coisa que é muito importante nos nossos dias, que é a discussão do gênero e como eles são imagens que são modelos quase. Então, por exemplo, Páris às vezes é dado como o mais feminino dos homens. Por quê? Então isso me intrigava, porque o que é ser feminino? O que é ser masculino na Grécia Antiga? E até mesmo Helena era como uma mancha para as mulheres. Então, nossa, interessante isso no contexto de gênero, para as pessoas que se interessam por esse assunto. Então isso tudo me despertou a curiosidade e eu estou aqui estudando e quero estudar por mais tempo.

Leonardo: Bom, ouvinte, vamos então nos aprofundar mais nos personagens. Eles já são bem até conhecidos aí para quem gosta de mitologia, principalmente mitologia grega. Mas, ouvinte, caso você não saiba muito bem, a Helena é filha de Zeus e de Leda, então, ou seja, é uma semideusa, tem a questão do sangue mortal e do sangue divino. Ela acaba sendo também irmã de outros personagens já conhecidos, que são o Castor e Pólux e de Clitemnestra. Os irmãos dela, a família dela também são personagens conhecidos na mitologia grega. Mas, como é bem comum na mitologia, tem variações dessa genealogia. Na verdade, a gente até vai mostrar variações de como a Helena é vista, e a Helena tem variações disso aí em várias áreas, porque ela também é vista como uma deusa em alguns locais, algumas épocas. Ela tem essa variedade. A Helena é mais conhecida mesmo pela questão do rapto dela, que gera toda a questão da Guerra de Tróia.

Paloma: Gostei de você ter ressaltado que, de fato, há muitas variações, como é muito comum na mitologia; uma comunidade em que não há nada escrito, porque até a poesia, antes, na verdade, era só recitada, era só performada, então não havia nada escrito, então variações acontecem e elas não são contraditórias nesse mundo, elas podem coexistir tranquilamente. E, bem, como você disse, Helena é uma figura mitológica, semideusa, filha de Zeus com uma mulher mortal, que é a Leda, mas é adotada, entre aspas, por um pai de criação mortal, que é Tíndaro, o rei de Esparta. Por isso, em muitos poemas, ela e o seus irmãos e irmãs podem ser chamados também de tindaridas ou tindáridas, a depender da tradução. Bom, em Homero, e eu acho importante sempre começar com esse autor quando a gente vai falar alguma coisa, porque ele é o primeiro que nós temos em questão da linha temporal, não há indicações daquela versão de que ela teria nascido de um ovo, mas já em Eurípides, que é um poeta de tragédias, e na iconografia clássica, da Atenas clássica – essa versão já está consolidada -, então, no mito Zeus seduziu a mortal Leda, tomando a forma de um cisne, que é uma ave muito ligada ao mundo erótico, considerada até hoje uma ave muito bela, o que vai condizer com a característica principal de Helena, que é a beleza. Helena será chamada de a mulher mortal mais bela do mundo. E, bom, por que o nascimento de Helena? É claro que Zeus não precisa de uma desculpa, de um motivo para seduzir belas mortais casadas, mas, em um poema épico perdido, que nos sobraram alguns fragmentos, há a menção que a Terra estava muito cheia de humanos, estava com peso nas costas, não estava aguentando, e, para isso, ele vai conceber uma linda filha que vai causar uma grande guerra para diminuir a quantidade de mortais. Então Helena, nessa versão, seria quase uma segunda Pandora.

Leonardo: Já foi tudo planejado, Zeus já sabia muito bem o que ia dar.

Paloma: É, já dizia no início do proêmio da Ilíada: tudo sob os desígnios de Zeus. Então Zeus é muito esperto. Além de Helena, Tíndaro e Leda tiveram outros filhos famosos. Você citou Castor e Pólux, são também chamados de polideuses em grego, que são gêmeos conhecidos como Dióscuros, e a história deles é bem interessante. (Inint) [00:12:26] é semideus – que é polideus -, que também são filhos de Zeus, e o outro é o Castor, que também é filho de Tíndaro; além dos gêmeos, Helena ainda é irmã da famosa Clitemnestra, que essa é 100% mortal e vai assassinar o marido Agamemnon, é mãe de Ifigênia, de Orestes, de Electra, também famosa. Mas também haveria duas outras irmãs, que sabemos muito pouco, de acordo com o poema incompleto de Hesíodo, que é o Catálogo de Mulheres. Tíndaro e Leda ainda tiveram Timandra – ela vai largar o marido e vai ficar com outro, é tudo que sabemos sobre ela; e Filonoé, que é uma virgem que vai ser transformada por Ártemis em imortal para ser uma de suas companheiras. E é claro, se Helena é filha de Zeus, ela também é meia-irmã de tantos outros mortais e imortais de Zeus. Para entender a divinização de Helena, nós temos que analisar por duas perspectivas diferentes, que a primeira é na tradição poética e a outra é a tradição cultual, do dia a dia, que seria aí um trabalho mais arqueológico, historiográfico. Em Homero mesmo, já tem alguns indícios interessantes de Helena como deusa. Na Odisseia, no canto XV, ela é inspirada pelos imortais para interpretar um presságio, e Telêmaco, que é o filho de Odisseu, responde a ele que ele iria cultuar Helena como uma deusa. Bom, e de fato Helena acerta o presságio. Pode ser só uma piscadela de Homero para essa tradição ou não, pode ser só uma coincidência, mas, de fato, é interessante. Porém, já com Estesícoro, que é um poeta ali do século seis antes de Cristo, ainda no período arcaico, parece que ele teria tratado Helena de fato como uma deusa, o que faz sentido, porque a região dele, que é a Magna Grécia, cultua Helena como uma deusa. Porém o que chegou para nós inteiro é Eurípedes, que vai mencionar a divinização de Helena em três tragédias, se não me engano, que são Helena, Orestes e Electra, sendo que, na tragédia Orestes, Helena terá um papel bem delimitado. Ela será uma deusa que vai auxiliar os marujos e os navegantes a fazerem uma boa viagem no mar, que é um domínio muito parecido com o que os Dióscuros vão desempenhar também na sua forma cultual. E, bem, o motivo para ela se tornar imortal é porque ela é filha de Zeus e porque ela foi um plano do deus, então seria o justo transformá-la em imortal. Porém, agora, quanto aos contos que eu sei, os heróis, de um modo geral, eram cultuados por toda a Grécia, independentemente de se tornarem deuses ou não. É até confuso para aqueles que estudam os cultos aos heróis distinguirem quando um herói é divinizado ou não em uma região. Logo, Helena com certeza era uma heroína muito venerada, assim como tantos outros heróis, porém, em alguns lugares ela era de fato uma deusa, isso principalmente em Esparta, sua terra de nascença, e lá havia templos e santuários dedicados a ela, em que havia competições juvenis em sua honra, iniciações de meninas e consagrações de sua beleza nos casamentos. E também há de se notar que há uma certa tendência de esses santuários se localizarem justamente no litoral, que pode ser aí um indício se ligando com o que o Eurípides sobre o seu domínio, de poder ser no mar.

Leonardo: É isso que eu também ia perguntar, como era ela em Esparta, já que ela é de lá, toda a linhagem vem dali. Então é de se imaginar de ali realmente ter um culto maior para ela.

Paloma: Sim, mas, como eu disse, ele também se estendia para outras partes. E é claro, a gente nunca sabe com certeza delimitar quais lugares, porque muitos não deixaram nenhum registro escrito. Mas parece que na Magna Grécia, que é ali no sul da Itália, também havia esses cultos, e fora que Atenas tinha conhecimento desses cultos, porque, afinal, Eurípedes faz uma tragédia dizendo que ela se tornou uma deusa. Então Atenas não ignorava essa característica de Helena.

Leonardo: Uma coisa que é interessante também mostrar é que o pessoal conhece a ideia da Helena nisso de ela ter sido raptada por Páris e aí gera toda a Guerra de Tróia, que é o momento mais famoso, mas tem também coisas que vão acontecendo antes, inclusive outros raptos.

Paloma: Sim, coitada.

Leonardo: Então você vê que a questão de ela ser bela e, com isso, os homens quererem raptá-la já é de longa data mesmo. Ou seja, Zeus realmente se empenhou em fazer o destino ficar dessa forma.

Paloma: Sim, pois é. O que a gente tem de registrado, que a gente sabe, é que desde cedo Helena vai se destacar pela sua beleza e a fama vai se espalhar por toda a Grécia. E um dos heróis mais famosos que vai se encantar por Helena é justamente Teseu, que é o herói ateniense que, junto com o amigo dele de aventuras, que é o Pirítoo, teriam raptado a heroína ainda muito jovem. Aí a idade varia – já vi sete anos, nove anos, 13 anos, enfim, muito nova, ainda virgem, (inint) [00:17:57], enquanto ela estava dançando em templo de Ártemis, que é mais significativo, porque é um indício da virgindade de Helena na época que foi raptada. Bem, então os dois vão levar Helena para Ática, onde Teseu reinava, e quem irá salvá-la serão os seus irmãos, os Dióscuros, que vão aproveitar uma ausência de Teseu para invadir a região e, inclusive, vão levar a mãe de Teseu como prisioneira. Em Homero, no canto III da Ilíada, o nome dessa mãe, Etra, é mencionado como uma das criadas que acompanham Helena, mostrando que já nos poemas homéricos essa tradição era conhecida, mas essa história teria sido contada por muitas pessoas já, por Hesíodo, por Estesícoro, enfim, por muitos poetas, uma versão bem incomum. No poema de Estesícoro, Ifigênia seria a filha dos dois, seria filha de Teseu e Helena, mas seria posteriormente dada para Clitemnestra e Agamemnon criarem – uma versão que foi aparentemente só contada por Estesícoro. Mas o que é legal dessa questão do rapto de Helena por Teseu é que é por causa desse primeiro rapto que Tíndaro vai firmar um juramento com todos os pretendentes de Helena – então estamos falando de todos os mais nobres, mais ricos da Grécia – de que todos respeitariam a escolha do marido, a escolha de Helena pelo marido, e que, se um dia Helena fosse raptada ou outra coisa acontecesse que injuriasse o marido de Helena, os presentes, os pretendentes iriam lutar para recuperá-la. E é o que vai acontecer quando Páris leva Helena para Tróia. O interessante desse mito é que a gente já vê que Helena não é só uma simples esposa, mas também é um troféu a ser disputado.

Leonardo: E, nesse momento, Zeus devia estar todo orgulhoso de o plano dele estar dando certo.

Paloma: Ah, com certeza. Eu acho que Páris chegou um pouquinho atrasado. Se fosse antes do juramento, teria dado certo, mas depois deu tudo errado.

Leonardo: Sim, é, foi graças ao juramento que ferrou tudo.

[Trilha sonora]

Leonardo: Bom, você citou vários autores e um deles… você falou do Estesícoro, e ele é um que você se aprofundou bastante em uma das suas pesquisas, porque ele fala muito dela, ele a trata de várias formas, mas é legal acho que apresentar aí para o ouvinte quem é esse poeta, já que, como você falou mesmo, sempre se começa por Homero, que é o mais conhecido, mas então muitas vezes a pessoa pode não conhecer quem é o Estesícoro.

Paloma: Ele foi um poeta mélico ou lírico. Ele viveu no final ali do século sexto antes de Cristo, na região da Magna Grécia, ou seja, nas colônias gregas no sul da Itália, e ele tinha um estilo poético diferente de seus outros colegas mélicos. Então os seus poemas eram longos, de caráter elevado, enfim, e, lógico, por ser um poeta que trabalha com material épico, ele tratou sobre a Guerra de Tróia em seus poemas, mas também temos informações sobre outros muitos mitos, como o mito de Édipo, no poema Tebaida, e de Héracles, no poema Gerioneida, também todos compostos por Estesícoro. Infelizmente, pouquíssima coisa foi recuperada, temos poucos fragmentos e muitos são danificados, o que é uma pena. E Helena, curiosamente, vai desempenhar um papel muito importante na poesia de Estesícoro, porque, pelo menos do que chegou até nós, ela está presente em quatro poemas dele: O Saque de Tróia, Os Retornos, e os mais interessantes aqui para nós, que são o Helena e a Palinódia. Eu digo que são os mais interessantes, porque são os que a heroína é a protagonista de fato, e também porque são os poemas que se misturam com a vida do próprio poeta. Há uma anedota muito difundida na Antiguidade que diz que Estesícoro teria composto o poema Helena, que infelizmente também só chegou uma trinca de versos para nós, mas que nele o poeta falaria muito mal de Helena. Então, de acordo com os testemunhos antigos, nesse poema haveria o rapto de Teseu, o juramento de Tíndaro, o casamento com Menelau e o seu rapto por Alexandre, o Páris. E essa anedota diz que a deusa Helena – e aqui eu friso que a Magna Grécia, região do Estesícoro, era uma das regiões que cultuavam Helena como deusa – teria punido Estesícoro por essas injúrias do poema com uma cegueira. Então ele fica cego por causa desse poema. Essas injúrias, esses xingamentos não chegaram até nós, porém há um fragmento que possivelmente é do poema Helena, mas nós não temos certeza, que pode ser um indício desse xingamento. Nele, o narrador vai contar que Tíndaro, uma vez fazendo um sacrifício dedicado a todos os deuses, se esqueceu de (Afrodite) [00:23:22], então, como castigo, porque isso é uma impiedade, isso é terrível, a deusa teria feito de suas filhas todas bígamas, trígamas e abandona-maridos. Ou seja, crimes ligados à promiscuidade, um domínio da deusa, e que manchariam o nome de Tíndaro e que ferem as condutas esperadas de uma mulher e mãe no imaginário grego. E, como eu disse anteriormente, de fato, Clitemnestra mata o marido em comunhão com o amante, Timandra vai largar o marido por outro e Helena também. Então esse pode ter sido um desses xingamentos de Estesícoro para Helena. Porém, como nós vimos nesse poema, Helena foi para Tróia, foi adúltera, nada de novo sob o sol etc., mas ainda sobre a anedota biográfica do poeta, ele reconhece o seu erro e, por isso, vai compor um novo poema chamado Palinódia. Pali é um advérbio que significa outra vez, de novo, e esse -ódia, que dá a nossa palavra ode, é canção. Então literalmente Palinódia é recantar, cantar de novo. E, bom, nessa Palinódia ele vai negar todas as acusações e todos os xingamentos que ele tinha feito à deusa Helena e, assim, ele vai recuperar a visão ao desenvolver uma nova versão do mito em que Helena nunca teria para Tróia. Então é muito interessante.

Leonardo: Eu achei muito legal quando eu li, que eu vi isso aí de interagir com o próprio autor, com o próprio poeta.

Paloma: Sim, isso é muito comum. Inclusive, quem estuda esse tipo de biografia dos poetas, às vezes a gente nunca sabe separar o que é verdade e o que é uma projeção da obra em cima da biografia. Mas o que é legal é que, pela primeira vez, pelo menos para nós, é desenvolvida uma nova versão do mito de Helena em que, depois, Eurípedes vai desenvolver melhor, em uma tragédia chamada Helena, que foi provavelmente inspirada por Estesícoro, e, nessa versão, a deusa Hera, irada por ter perdido o julgamento de Páris, que nós vamos falar um pouquinho mais tarde, então, muito brava, ela vai fazer um eidolon, que é um tipo de cópia, um simulacro, e vai dá-lo a Páris no lugar da verdadeira Helena. Então, dessa forma, Páris nunca – nessa versão – teve de fato Helena e mesmo assim será punido com a guerra. Então, lógico, afinal, Estesícoro não poderia negar nunca a Guerra de Tróia, seria loucura negar, dizer que nunca existiu, mas então a verdadeira Helena, nessa versão, ficaria salva do adultério no Egito, sob proteção do rei Proteu, aguardando fielmente o seu marido Menelau voltar da guerra e descobrir a verdade. Mas aí é interessante, porque independentemente de ser verdade ou não, de ser a verdadeira Helena ou não, o fato é que o nome Helena é manchado do mesmo jeito e é usado como pretexto da guerra da mesma forma.

Leonardo: É, isso que eu ia falar, porque ok, ela não cometeu nenhum adultério, não fugiu nem nada, mas, para quem está indo lá guerrear, está assim, então quem vê a imagem dela, vê dessa mesma forma.

Paloma: É, pois é, e aí tem todo um debate filosófico em torno disso, se os nomes têm mais força do que coisas corpóreas, enfim, aí já nem me atrevo, mas, querendo ou não, é um assunto muito interessante para se pensar, porque inclusive na tragédia de Eurípedes ela fala: “Ele não tem meu corpo, mas tem meu nome”. Então em um mundo em que o nome é tão importante, acaba sendo elas por elas.

Leonardo: Eu acho que foi porque o autor mesmo queria livrar o dele ali, quis pedir desculpas (inint) [00:27:23].

Paloma: É, mas, de fato, parece que já havia antes essa versão correndo solta, talvez mesmo em Esparta, mas o Estesícoro teria sido o primeiro a desenvolver isso em um poema, mas o que chegou até nós foi Eurípedes, foi a tragédia de Eurípedes, que inclusive, para quem se interessar, tem uma tradução completa do Jaa Torrano dessa tragédia disponível online em uma revista chamada Códex. Então, quem se interessar, está em português e de graça.

Leonardo: Você citou outros autores que também trataram da Helena. Por que você escolheu especificamente o Estesícoro para se aprofundar mais? Ele teria mais conteúdo? É o que chama mais atenção? O que teve?

Paloma: Como eu comecei estudando a mélica, que é esse gênero, no caso, Estesícoro era o poeta que tinha mais material com Helena, por isso que eu me aprofundei nesse artigo que eu publiquei no início desse ano. Porém, nesse mesmo gênero, há outros poemas muito famosos, de outros autores, por exemplo, Safo tem um poema que é o Fragmento XVI, que cita Helena, ela viajando até Tróia. É um poema um tanto controverso, mas, enfim, nesse poema Safo fala o que ela acha mais belo: tem algumas pessoas que acham que o há de mais belo no mundo são cavalarias, outros acham que são armaduras, mas, para mim, é aquilo que se ama, e aí ela usa o exemplo de Helena, porque a mais bela mortal que já andou por essa terra, mesmo ela deixou o marido, deixou a filha, deixou a pátria, tudo por causa dessa coisa mais bela, que é a pessoa que ela ama. Esse é um poema belíssimo que contém Helena e tantos outros.

[Trilha sonora]

Leonardo: Então agora a gente vai falar do outro lado, já que é um casal. A gente falou da Helena e como ela é vista, então agora a gente vai para o Páris, um dos responsáveis, já que Zeus que bolou tudo, mas ele que realmente vai lá e rapta a Helena. Na verdade, rapta, mas já fica uma questão…

Paloma: Ou Afrodite.

Leonardo: É, ou Afrodite. Você vê que tem vários culpados.

Paloma: É isso que é muito legal, por isso que é uma teia muito complexa, assim como a vida: nada é um culpado somente, tem toda a questão, por isso que eu gosto de mitologia grega. Ela é muito complexa. Mas eu gosto de dizer que a história de Páris é trágica por excelência. Se pensar em tragédia modelo, de acordo com Aristóteles é o Édipo Rei, de Sófocles. A história desse personagem, Páris, tem muitos pontos em comum com a de Édipo. Então os pais de Páris são Príamo e Hécuba, que são os reis de Tróia, só que pouco antes do seu nascimento é uma visão de que ele seria o responsável por destruir a cidade. Não é uma história que está presente em Homero, porém, já com Píndaro, que é um outro poeta mélico lá da virada do período arcaico para o clássico, então bem posterior aos poemas homéricos, há uma versão de que Hécuba teria sonhado nas vésperas do parto que estaria dando à luz a uma tocha que queimaria a cidade. E, por causa dessa visão, em algumas versões inclusive até Cassandra que vai profetizar, mas independentemente, é a partir dessa visão que Hécuba e Príamo decidem, pelo bem da cidade, deixar o seu filho recém-nascido para morrer. Porém, no mundo grego, matar um parente consanguíneo, independentemente do motivo – vide Orestes, que mata a mãe, porque matou o pai, enfim, mesmo assim não é perdoado -, é um crime terrível passível de punição divina das Eríneas, que são divindades terríveis que levam os mortais à loucura. Então por isso Hécuba não poderia simplesmente pegar uma espada e matar o bebê, porque isso seria considerado um crime consanguíneo. Logo, o que eles fazem? Eles vão abandonar a criança recém-nascida na floresta e deixar que a natureza faça o resto. Uma coisa importante a ser notada é que o nome dado por Hécuba e Príamo para essa criança é Alexandre, o nome real que, se de fato por grego, a gente ainda não tem certeza, mas provavelmente é, significa o defensor de homens. Então é um nome muito real, da realeza. Bom, obviamente esse plano de deixá-lo ali na floresta não vai dar certo, pois ele será encontrado, ele é encontrado por pastores que vão ter pena da criança e vão criá-lo como um filho, dando a (inint) [00:32:35] nome, que é o nome mais famoso para nós, que é Páris, cuja etimologia a gente não sabe, é desconhecida. A gente não sabe o que significa exatamente. Portanto, Páris vai passar a maior parte da vida dele como pastor, tendo uma educação pastoril e longe das suas responsabilidades reais.

Leonardo: Isso é interessante, você ter comparado com o mito do Édipo. Realmente, desde o começo você já começa a ver as similaridades, então não tem como dizer que também não é algo trágico.

Paloma: Terrivelmente trágico. Acho que até mesmo o julgamento de Páris é muito trágico, porque o que você faria no lugar dele? Eu não sei.

Leonardo: Na Grécia antiga, nessa época em que estavam os deuses interferindo, se a divindade chegou ali perto, você sabe que você se lascou, porque…

Paloma: Exatamente.

Leonardo: … qualquer escolha que você fizer, mesmo que você ganhe de um lado, você vai perder por outro, então já era.

Paloma: Exatamente, não tem jeito. Eu correria.

Leonardo: E é interessante que até aí, ele crescendo como pastor e tudo, a vida dele estava tranquila. Não é uma vida gloriosa como alguém da elite, mas estava tranquila, era até melhor se manter por aí.

Paloma: Pois é, seria.

Leonardo: Mas chega o momento que… aí você vê que mesmo a pessoa sem fazer nada, vão lá os deuses e colocam isso em risco, porque aí que os deuses aparecem para instigar o famoso julgamento de Páris.

Paloma: Aqui mesmo na minha fala eu já citei duas origens possíveis, que é a dos Cantos Cíprios, que põe o plano de Zeus para diminuir a população humana, também já citei o esquecimento de Tíndaro, que causou a ira de Afrodite – são ali outras origens possíveis. Mas a mais famosa é, sem dúvida, o julgamento de Páris. É um mito muito célebre representado diversas vezes: iconografia, em vasos, em mosaicos da Antiguidade, até mesmo do período do Renascimento. É um episódio que é inclusive aludido na Ilíada algumas vezes, mas não é em nenhum momento descrito explicitamente em nenhum momento. Há ainda versões que recuperam um pouquinho mais para trás do julgamento de Páris, que é o casamento de Tétis e Peleu, que são os pais de Aquiles, que com certeza não é tratado por Homero, mas sim nos Cantos Cíprios também, e é interessante para começarmos desse ponto, porque traz uma dicotomia interessante entre Éris e Eros, que são a discórdia e o amor, apesar de dar uma complicada na linha temporal dos acontecimentos, porque não faz muito sentido se a gente for pensar: no casamento de Tétis e Peleu, o Aquiles ainda não nasceu, mas Páris sim, então Aquiles é muito mais novo que Páris… mas, enfim, contradições da mitologia. Bom, enfim, tirando isso, nas bodas dos pais de Aquiles, Éris, que é a deusa da discórdia, vai jogar um pomo ou uma maçã de ouro com um escrito: “Para a mais bela”. Bom, o caos se instala, porque deusas poderosíssimas vão se proclamar a mais bela: Hera, Atena e Afrodite. E Zeus, que não é bobo nem nada, vendo que o plano está dando certo, vai dizer assim: “Eu é que não vou resolver isso aí e vou deixar para um mortal”.

Leonardo: Sim.

Paloma: É basicamente isso que ele fala. Alguns ainda vão acrescentar que vai deixar para o mortal, o homem mais belo do mundo, então abro até aqui um parêntese: troianos eram conhecidos por terem uma beleza extraordinária. Temos Ganimedes, que era um troiano que vai ser raptado por Zeus e vai ser imortalizado por ele, porque ele era muito lindo e nem Zeus resistiu; Anquises, que vai seduzir a própria Afrodite; Titono, que vai seduzir Aurora. Então troianos lindíssimos, Páris não é uma exceção. E, bem, então Zeus vai escolher o homem mortal mais belo do mundo, que é Páris, para fazer esse julgamento, o primeiro concurso de beleza que nós temos notícia. E, bem, um dia, de boa, lá caçando no monte Ida, Páris dá de frente com as três deusas belíssimas e também com a responsabilidade – a baita responsabilidade – de escolher uma deusa como a mais bela. Ou seja, ele estava frito.

Leonardo: Já era.

Paloma: Como nós estamos falando da reciprocidade, das trocas, as deusas começam a oferecer algo para Páris caso elas sejam escolhidas, e os presentes oferecidos são justamente dons do domínio do poder de cada uma dessas deusas. Então Hera, que é a deusa do casamento, que é soberana ao lado de Zeus, vai oferecer a soberania por toda a Grécia; Atena, que é a deusa da Métis, da inteligência, da estratégia, oferece a transformação de ele ser o maior guerreiro de todos os tempos e que vai conquistar toda a Grécia; a Afrodite, por sua vez, que é a deusa da beleza, do erotismo, do desejo erótico, vai oferecer a mulher mais bela do mundo, que é, no caso, Helena. Na tragédia As Troianas, também de Eurípedes, tem um diálogo interessantíssimo de Helena, Hécuba e Menelau em que Helena, para se defender porque tem gente ali querendo que ela morra porque ela causou muita coisa ruim e tudo mais, ela vai usar o julgamento de Páris e vai dizer assim, basicamente, que ainda bem que Páris me escolheu, porque senão a Grécia estaria dominada e subjugada pelos troianos. Então, de fato, foi até bom para a Grécia.

Leonardo: Ele escolheu a única opção a qual não dominaria a Grécia, e aí isso causa a derrota de Tróia, já que aí a Grécia que acaba destruindo Tróia. Interessante isso.

Paloma: Com certeza não sabia que isso aconteceria. Inclusive talvez ele tenha sido até humilde e pensado assim: “Não, vou ficar aqui mesmo na minha, só quero uma mulher, está bom”, quem sabe? Coitado. Mas, sim, de fato, essa foi uma retórica muito inteligente de Helena, usar essa questão para se defender: “Olha só, ainda bem. Meu nome foi manchado, mas pelo bem da Grécia”.

Leonardo: É, e daí que vai para o momento crucial, que é quando ele… ele vai para a Grécia, para Esparta, mas de forma diplomática, não é? Não é nada com problema ainda.

Paloma: Antes, só uma coisa que eu acho importante frisar, que quando ele escolhe Afrodite, ele vai fazer das duas outras deusas suas inimigas, então Atena e Hera vão trabalhar contra Tróia em todos os momentos, e é importante, porque Atena é deusa da guerra e Hera é a soberana ao lado de Zeus, então ele escolheu duas inimigas terríveis, enquanto Afrodite vai sempre protegê-lo. Então quem leu a Ilíada deve se lembrar que, no Canto III, Páris e Menelau vão duelar e, quando Páris está para ser morto, vai ser Afrodite que vai envolvê-lo em uma névoa, retirando-o do campo de batalha, e vai levá-lo direto para a cama, limpo, cheiroso, maravilhoso. E, bem, como você disse, Páris vai voltar para a casa dele, até que vão chegar os Jogos Fúnebres Anuais em honra a Alexandre. O que é curioso, porque são jogos em honras a ele próprio, honra ao filho de Príamo e Hécuba, que eles achavam estar morto. E aí os pastores da região ali de Tróia deveriam oferecer algum dom como prêmio para o vencedor dos jogos. Pois bem, então é escolhido um touro belíssimo que eles tinham na propriedade, que é de Páris, e que ele não queria se desfazer. Então ele decide ir até a cidade de Tróia para reconquistar esse touro e acaba vencendo todos os competidores, inclusive os seus irmãos – sem saber que eram -, e isso foi considerado uma façanha. Como um simples pastor venceria os mais nobres da cidade de Tróia? Então, de acordo com o mito, Cassandra vai reconhecer o irmão e vai avisar aos pais. Outra versão inclui até que Afrodite ajuda no reconhecimento do filho. Mas é a partir de aí que ele vai voltar a ser Alexandre, o príncipe de Tróia. Infelizmente, a gente sabe pouco sobre esse episódio, porque as duas tragédias que tratariam dele foram perdidas, mas nós temos alguns testemunhos da época helenística imperial. E, bom, é a partir dali, depois que ele é reconhecido como príncipe – por isso que eu fiz essa volta – que ele vai como um diplomata, vamos dizer assim, até Esparta, junto… em algumas versões ele está sozinho, outras, ele está com Heitor, até mesmo Eneias, mas, enfim, era uma expedição de Tróia a Esparta com barcos inclusive construídos por Páris e guiados por Afrodite. Afrodite, então, está ali mexendo seus pauzinhos. Páris vai finalmente encontrar o presente oferecido pela deusa. Porém Helena já era casada com Menelau, que, por sinal, era um ótimo anfitrião. E eu ressalto isso porque, em muitos filmes que a gente tem, os diretores tentam aliviar ali a barra de Páris, porque roubar a mulher do outro nunca é uma coisa legal, então colocam o Menelau como um homem meio ruim, um homem bruto. Isso acontece muito, mas, na mitologia grega, esse não é o caso. Menelau é um anfitrião impecável, porque ele vai se ausentar em um momento, e é nesse momento ali, aproveitando a ausência de Menelau, que ele vai seduzir Helena junto com o auxílio da deusa.

Leonardo: Ele não teria, então, necessariamente raptado Helena. Helena foge com ele, não é? Não foi uma coisa forçada.

Paloma: É, isso é uma questão interessante, muito importante, porque a palavra rapto que a gente usa aqui no português para nomear o episódio tem uma carga muito negativa, porque a gente pensa, é inferido que foi violento, que foi contra a vontade de uma das partes. Porém, aqui nesse imaginário, esse termo vai ser usado porque uma mulher foi levada de seu marido legítimo, e é só isso. Helena, por exemplo, na Ilíada, várias vezes vai dizer que foi por vontade própria e se arrepende por isso; outras vezes vai falar: “Ah, é que na verdade foi Afrodite que colocou lá e tal”, então tudo depende da intenção retórica ali da personagem, mas, se Afrodite também é a deusa do desejo erótico, então, independentemente, houve uma persuasão erótica. Helena foi porque ela desejava Páris, ou, se a gente quiser modernizar as coisas, porque ela amava Páris. Não há, pelo menos que eu me lembre, nenhum testemunho que diga que ela foi levada com violência para Tróia. Isso é fora de questão. Há, sim, vontade própria ou persuasão divina.

Leonardo: De qualquer maneira, haveria o desejo ali.

Paloma: Exatamente.

Leonardo: É, e aí que gera toda a questão da guerra, que aí já até vai além da história de Páris e Helena, porque aí já vai envolvendo outros personagens, outros heróis, envolve as narrativas de outros heróis: Aquiles, Odisseu, Agamemnon. Vai ter vários aí. Isso que é até interessante – a gente não vai tratar aqui da Guerra de Tróia em si -, porque aí você vê como esse é um episódio importante na mitologia, porque não só é apresentado, mas é onde você vê muitos dos personagens mais famosos.

Paloma: E é um evento muito importante para a identidade grega como um todo, porque isso é reconhecido pelos antigos – os antigos já diziam isso – que foi por causa da Guerra de Tróia, então por causa do rapto de Helena, que os gregos se uniram pela primeira vez em prol de alguma coisa. Então foi de fato o começo de uma identidade helênica, e essa guerra vai durar, se estender uns dez anos.

Leonardo: Sim, e quem lê a Ilíada vê só um recorte. Eu não me canso de ver pessoas que começam a ler a Ilíada e: “Nossa, mas só é uma parte”.

Paloma: Pois é, mas, de fato, eu acho que essa é a grande beleza do poema da Ilíada, porque é ele se concentrando… em pouco espaço de tempo, ele consegue explorar absolutamente todos os personagens de uma forma magnífica. Agora, se ele tivesse que narrar tudo, ele não conseguiria dar conta de fazer algo tão bonito.

Leonardo: Sim.

[Trilha sonora]

Leonardo: Então a gente viu sobre quem é Helena, quem é o Páris e aí teve esse… eu estou acostumado a chamar de rapto, mas essa questão da união dos dois, mas é interessante ver como que foi a relação dos dois, como ficou a partir disso.

Paloma: É, então, na Ilíada, que, como você disse, narra só o finalzinho da guerra, eu diria que o relacionamento entre os dois já está um pouco desgastado, porque Helena sente falta do primeiro esposa, da pátria, dos pais, da filha, e, em contrapartida, ela censura Páris diversas vezes chamando-o de covarde. Então, vamos dizer assim, Helena já não está tão mais apaixonada por Páris como ela poderia ter estado no início da guerra. Já Páris, por outro lado, parece continuar sentindo a mesma coisa pela esposa. A Helena, na Ilíada, é um personagem muito complexo, com forte consciência da sua importância, então na primeira aparição dela, ela está fiando uma manta com uma imagem do combate, da guerra, que é feita por ela, que tem ela como causa, e ela se sente culpada pela guerra, ela se insulta muitas vezes, se chamando de cadela, diz que preferia ter morrido. Enquanto Páris é o oposto, ele fica relativizando a culpa dele, dizendo que o que está acontecendo é vontade dos deuses, ele é vaidoso, ele tem uma habilidade notável com arco, mas não gosta muito de lutar, enfim, e ele também tem alguns dons artísticos interessantes de serem notados, como a lira, a dança e até construção. Ele construiu o próprio palácio dele lá em Tróia. Em eventos posteriores à Ilíada, que eu acho interessante para a gente falar sobre os personagens, e que não é um demérito, como podemos pensar, e sim uma honra – todo grande herói vai receber uma ajudinha dos deuses -, é: Páris com Apolo que vão matar o maior dos guerreiros da guerra, que é Aquiles. Isso já é posto em Homero, mas não é descrito, e tardiamente vai se desenvolver o mito do calcanhar, que ele foi atingido no calcanhar, mas o fato é que é com uma flecha atirada por Páris e guiada por Apolo que Aquiles será morto perto ali dos portões da cidade. E, depois disso, nós sabemos que Páris também morre através de uma flecha de Filoctetes, que é o arqueiro considerado o melhor daquela época, e usando – isso é muito legal – o arco de Héracles, que Héracles deu para Filoctetes. E aqui vai acabar a história de Páris. Porém Helena não terá muito tempo para curtir o luto dela, ela logo vai ser dada em casamento para outro troiano, que é um irmão de Páris, que é chamado Dêifobo – há inclusive uma menção de um tipo de luta para ganhar a mão de Helena – e, durante a queda da cidade, de acordo com a Odisseia, inclusive, Helena teria executado um jogo duplo, ora ajudando os troianos, ora ajudando os gregos, e quase vai ser morta várias vezes. A gente tem uma versão do Estesícoro, inclusive que diz que os gregos queriam matar Helena apedrejada, mas, assim que veem a sua beleza, as pedras vão cair das suas mãos. Bem dramático. Eneias, na Eneida, de Virgílio, descreve que o próprio Eneias, que é o filho de Afrodite, quase mata Helena por vingança, mas é impedido por Afrodite. E o mais famoso é Menelau, que vai ter a intenção de matá-la, matar a esposa adúltera, mas, quando a vê novamente ele é tomado pelo desejo e desiste da punição. Há vasos incríveis que mostram a espada caindo assim das mãos de Menelau enquanto Helena joga um olhar muito sedutor ou mesmo mostra um seio. É muito interessante. Mas, enfim, de todo modo, ela vai sair dessa encrenca e vai sair linda e loira da Guerra de Tróia direto para Esparta novamente e, depois de bons anos ali, errantes, no mar, porque eles vão se perder no mar, enfim, Helena vai retomar como rainha, casa a filha, Hermíone, com outro filho de Aquiles, e, enfim, volta a ser a rainha que sempre foi. Em algumas traduções, ela é ainda divinizada. Então para a Helena deu tudo certo.

Leonardo: Fugiu com outro, foi para outro local, fez a maior guerra que teve ali, destruiu toda uma cidade, mas para ela, depois, no final de tudo, está tranquila.

Paloma: É, então, as vantagens de ser filha de Zeus e de ser muito bonita.

Leonardo: Bem interessante ver essa questão de que para ela deu tudo certo, porque o Páris, tudo bem, ele foi ali por motivação dos deuses, que eles que o fizeram fazer o julgamento e tudo mais, mas como Tróia iria cair, então ele ia se ferrar, tanto que a gente vê: de Tróia, sobram poucos ali. O mais famoso ali de ter sobrado de Tróia é o Eneias, porque mais para frente Roma já vai se utilizar dessa narrativa, mas, fora isso, é tudo muito destruído. Os gregos que ainda… Agamemnon também continua depois – lá dos gregos -, mas ele continua se ferrando mais; Odisseu ainda tem a aventura dele, mas uma hora consegue chegar em casa, beleza; Aquiles não tem o que fazer, porque morre lá. Mas os gregos ainda vão se ajeitando. Agora, Tróia, não. Tróia se ferra mesmo. Agora, do lado de Menelau e Helena, eles estão mais tranquilos, tanto que na própria Odisseia você vê, o filho do Odisseu, o Telêmaco, vai lá, ele encontra o Menelau e a Helena. Você vê que eles estão ali no reino deles, meio que está mais tranquilo para eles.

Paloma: Sim. É claro, há uma tensão. Para quem lê, dá para entender uma tensão entre marido e mulher, porque, por exemplo, no Canto IV, Helena começa a contar histórias de Odisseu para animar Telêmaco, afinal, ele está lá procurando o pai, nunca viu o pai na vida praticamente. Então ela começa a contar algumas histórias e conta que ela, durante a noite do saque ou pouco antes do saque, agora não me lembro, ajudou, reconheceu Odisseu, que estava disfarçado, porque ele se disfarça muito bem, mas ela o reconheceu – porque ela é incrível. Mas ela o ajudou. Ele contou os planos para ela, de um cavalo de pau e tudo mais, enfim, ela foi uma superajudante dos gregos. Porém, depois, Menelau fala assim: “Ah, é verdade, você contou tudo muito bem, mas depois eu acho que alguma divindade ali meio (inint) [00:53:00], porque você, depois, quando chegou o cavalo de Tróia, a armadilha, ficou imitando vozes das mulheres dos homens para que eles se manifestassem e se traíssem, e aí o plano não daria certo. Que curioso, quem será essa divindade? Quem fez isso?”. Então há uma tensão.

Leonardo: Ainda fica uma rusga entre eles.

Paloma: É, então, por isso que eu adoro estudar Helena, porque é muito complexo, não dá para entender o que ela quer.

Leonardo: Mas isso é bem interessante mesmo, mostrar a importância dela. A importância traz essa complexidade dela, porque você poderia imaginar, como algumas outras personagens femininas na mitologia grega, de ela ser mais deixada de lado: ela fez esse problema, causou a guerra, que é o que eu vejo muita gente ver, quando a pessoa não conhece mais a fundo, não conhece essas características que vão além; veem: “Ah, é a mulher que fugiu com o cara de outro reino e aí gerou toda a guerra, então por culpa dela…” e acabou. Fica mais nisso, um superficial. Mas não, ela em essa complexidade de ela ter agido também depois de ambos os lados. É bem interessante mostrar isso, mostra a importância dela.

Paloma: Pois é, e é interessante, porque, querendo ou não, no caso, que essas histórias estão na Odisseia, é uma forma de mostrar como essa heroína também compartilha da astúcia de Odisseu, porque ela consegue ali jogar dos dois lados, desvendar as pessoas que estão ali disfarçadas, consegue fazer planos. Enfim, é muito interessante porque ela tem também essa métis, que é também uma característica do pai dela, que é Zeus, que é o mais astucioso de todos os deuses.

Leonardo: É bem interessante. Bom, ouvinte, espero que você tenha gostado aí do episódio. Foi legal mostrar personagens bem conhecidos e famosos na mitologia grega, mas que a gente consegue, ainda assim, se aprofundar mais quando a gente vai vendo as obras clássicas e vendo obras além do mais conhecido, que é o Homero com a Ilíada e a Odisseia, que a Helena, a gente mostrou que ela aparece um pouco na Odisseia. Mas é legal ver também de outros poetas, então ver toda essa complexidade. É bem interessante isso aí, ver como é um episódio importante com personagens importantes para isso. Então, ouvinte, espero que tenha gostado de saber mais de Helena e Páris. E, agora, Paloma, pode dar suas considerações finais, falar aí com o ouvinte também.

Paloma: Bom, primeiro quero agradecer de novo. Adorei fazer parte do projeto, gostei muito, me diverti. Bem, para quem se interessar mais sobre as minhas produções e sobre os personagens, como eu disse, o artigo que eu publiquei foi sobre as Helenas de Estesícoro, então foi focado nesse poeta e discuti um pouquinho, então quem se interessou pode pesquisar, está disponível online e gratuito. Também dei uma palestrinha, fiz uma fala em um congresso, também foi online, por causa da pandemia, então essa é uma das vantagens, que fica ali para qualquer pessoa que queira acessar mais tarde, que foi sobre Páris na Ilíada. Está no Youtube. Fora que, se alguém tiver uma dúvida, quiser me inscrever, quiser algumas dicas de bibliografia, pode me mandar um e-mail, que eu vou soletrar aqui: paloma.betini@usp.br – Betini é com um T só e com I no final. E é isso. Eu espero que vocês tenham gostado e que eu tenho passado ali toda essa animação por esse assunto; que vocês (inint) [00:56:48] também em pesquisar e quem sabe eu esteja falando aí com futuros pesquisadores da área. Porque, gente, por favor, nós queremos pessoal do grego, do latim, venham, estudem, a gente está muito animado. Ah, e outra coisa que eu acho importante divulgar é o nosso grupo de pesquisa feito por estudantes da graduação, que é o Panastér. A gente tem rede no Facebook, no Instagram e a gente marca reuniões em que discutimos textos da Grécia Antiga. Então, para quem se interessar, é uma reunião bem tranquila, não precisa ser especialista, não precisa ser da área, é só ler o texto e discutir. Então quem se interessar por nos seguir nas redes sociais e se inscrever para os próximos encontros.

[00:59:02]

(FIM)