Papo Lendário #212 – Nastrond e outros mundos dos mortos

Papo Lendário #212 – Nastrond e outros mundos dos mortos

Nesse episódio do Papo Lendário, Leonardo Mitocôndria, Juliano Yamada e o convidado Leando Vilar conversam sobre Nastrond e vários outros mundos dos mortos na mitologia nórdica.

Conheça Nastrond, e entenda como ele pode ser comparado com o inferno cristão.

Ouça sobre diversos mundos dos mortos na mitologia nórdica, e entenda quem ia para qual mundo.

Veja um pouco mais sobre Valhalla, Hel, e outros mundos mais desconhecidos como Folkvangr, Bilskirnir, o Salão de Ran, Helgafell, e a Ilha de Gefjon.

– Esse episódio possui transcrição, veja mais abaixo.

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Pauta, edição: Leonardo Mitôcondria
Locução da abertura: Ira Croft
Host: Leonardo Mitôcondria
Participante: Juliano Yamada
Participante: Leandro Vilar

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— Transcrição realizada por Amanda Barreiro (@manda_barreiro)

[00:00:00]

[Vinheta de abertura]: Você está ouvindo Papo Lendário, podcast de mitologias do projeto Mitografias. Quer conhecer sobre mitos, lendas, folclore e muito mais? Acesse: mitografias.com.br.

[Trilha sonora]

Leonardo: Muito bem, ouvinte. Hoje no Papo Lendário a gente retorna à mitologia nórdica e, dessa vez, para falar sobre os mundos dos mortos, focando em um mundo específico do qual não se ouve falar tanto. E esse episódio foi baseado em um texto acadêmico, e, para isso, a gente convidou o próprio autor desse texto, o Leandro Vilar. Então tudo bom, Leandro?

Leandro Vilar: Tudo bom, Leonardo.

Leonardo: Pode aí se apresentar para os ouvintes, fala da sua formação, como você fez esse texto. Fica à vontade aí para se apresentar.

Leandro Vilar: Olá, galera do Mitografias. Eu me chamo Leandro Vilar, como o Leonardo disse, eu sou historiador, mestre em História. Atualmente eu estou terminando o meu doutorado em Ciência das Religiões. Eu também sou escritor e sou membro do núcleo de estudos vikings e escandinavos, o NEVE. No caso desse artigo que o Leonardo citou, eu o publiquei lá em 2016. Nessa época, eu já tinha ingressado no NEVE e eu já estava trabalhando com mitologia nórdica. Por acaso, eu estava lendo as eddas e eu me deparei com essa questão de Nastrond, que é o que a gente vai abordar hoje nesse episódio, que é um local, que é um dos mundos dos mortos, que é pouco conhecido, obviamente, que eu explicar aqui, e que, curiosamente, é um local destinado a punir certos criminosos. Enquanto outros mundos dos mortos nórdicos não têm essa ideia de punição, o Nastrond curiosamente teria. Por isso que, lá no artigo, eu sugeri que ele talvez fosse o inferno nórdico.

Leonardo: Isso me chamou bastante atenção, foi bem legal. E, antes aqui de entrar no tema do episódio, foi legal que você citou aí o NEVE, então a gente vai deixar também os links aí que, quem já é nosso ouvinte e está aí pela internet e tudo, já pode até conhecer talvez o NEVE, mas fica aqui a indicação para quem não conhece. Vale muito a pena, tem muito conteúdo legal voltado para a cultura e mitologia nórdica, é bem legal. Muitos conteúdos do Mitografias ou do Papo Lendário, dos outros episódios, me baseei em muito conteúdo que encontro lá. Bom, vamos então falar aí dos mundos dos mortos. E uma coisa que também achei legal, que você me corrigiu quando eu estava entrando em contato com você, que na pauta estava o reino dos mortos. Não caiu a ficha para mim, aí você falou: “O correto mesmo é mundo dos mortos”. É comum você encontrar como reino dos mortos, mas não tem reis, não é um reinado em si.

Leandro Vilar: É, não é, não tem. Por exemplo, o Odin, a gente pode considerar que ele seria o rei dos deuses, então Valhalla seria um mundo dos mortos regido, entre aspas, por um rei; mas Hel não é uma rainha, Thor não é rei, Freya também não é uma rainha. Então por isso que a gente não usa muito reino dos mortos, nesse caso. Mas há mitologias em que existe essa ideia de reino mesmo, que não é o caso da mitologia nórdica.

Leonardo: Na mitologia nórdica, então, a gente tem vários mundos dos mortos – começar a usar mais esse termo, mundo dos mortos, para se acostumar, porque é mais correto. Acho que o mais conhecido mesmo é Valhalla, mas a gente vai citar outros aqui para o ouvinte estar conhecendo.

Leandro Vilar: Pronto, eu vou começar por Valhalla, porque é o mais conhecido. Inclusive, recentemente a gente tem o novo Assassin’s Creed Valhalla, aproveitando o próprio subtítulo referente ao salão de Odin. Vamos ver o que eles vão inventar agora para esse jogo. Bom, se ele seguir a perspectivar do Odyssey e do Origin, eu creio que vai manter rpg com elementos de mitologia, então a gente pode esperar mais referências. Até no trailer mesmo que mostraram já aparece o Odin, no trailer. Vamos ver o que eles vão inventar. Bom, sobre Valhalla: o nome Valhalla significa salão dos mortos. Por que salão dos mortos? Porque, para quem conhece já, Valhalla é um local onde Odin e sua família vivem lá em Asgard e, quando os guerreiros valorosos que morriam em combate eram escolhidos pelas valquírias e eram levados ao Valhalla, por isso que é o salão dos mortos. Nesse sentido, os guerreiros que vivem em Valhalla já morreram, são as almas deles, no caso, que estão ali habitando. Aí quem seriam as valquírias? Ouve-se falar muito nas valquírias hoje em dia, principalmente por causa da série Vikings, que também deu mais, digamos, visibilidade à temática. Tem alguns que até falam: “Ah, a Lagertha seria uma valquíria”. Bom, Lagertha não é bem uma valquíria, ela é uma donzela de escudo, que é outra coisa. Nos mitos, existem mais ou menos dois tipos de valquírias: tem uma que a gente pode dizer que é tipo um espírito, que é aquela que escolhe os mortos que vão para Valhalla e outro lugar, que eu vou dizer daqui a pouco; e tem a valquíria que vivia entre os humanos, como o caso da Brunhilda. Bom, aí Valhalla é conhecido como o grande salão de Odin. Por que salão? Porque às vezes a gente encontra em alguns livros, na internet às vezes falam: “Valhalla seria o palácio de Odin ou fortaleza”. Bom, os termos fortaleza e palácio são incorretos. Primeiro que não existia palácio naquele contexto e a fortaleza não tinha nada a ver com a ideia de fortaleza como local de habitação de um rei. Então seria salão. Aí outra característica que eu posso citar, mais ou menos, é que Valhalla é descrito como um salão com centenas de cômodos, que ele teria o telhado coberto por escudos, as colunas seriam lanças, e os bancos seriam forrados com cota de malha e nas paredes teriam armas e escudos pendurados. Então você tem uma ideia de um salão bem guerreiro mesmo, ou seja, tudo que é armamento está lá decorando o local. Os guerreiros de dia ficariam treinando e se exercitando para a vindoura batalha final do Ragnarök, e de noite eles estariam no banquete ao lado de Odin e outros deuses, na ocasião, e eles tomariam hidromel e comeriam carne de javali. Então você pode dizer: “Ah, então esse aqui seria, entre aspas, o Paraíso nórdico?”. É, se a gente entender essa ideia de Paraíso como um local bom, então pode-se dizer que sim, o Valhalla teria mais ou menos essa ideia. É um salão para você treinar, lutar, conversar, beber e comer. Essa é a vida deles no pós-morte.

Leonardo: Então esse é o que é voltado para o Odin, não é? Porque uma coisa que eu percebi é que cada mundo tem uma divindade mais específica ali, e a do Valhalla é de fato o Odin que é o que comanda ali.

Leandro Vilar: Sim, sim, é o mais famoso. Existem epítetos de Odin que dizem: ele é o senhor do exércitos, é o senhor dos guerreiros, sempre aquela referência, é aquele que acolhe os guerreiros que morreram em batalha, mas não é qualquer guerreiro, geralmente é o guerreiro valoroso, é aquele que mostrou coragem, lealdade, bravura no campo de batalha e mereceu a honra de ir residir lá no salão de Odin. Só que existe um relato que diz que nem todos os guerreiros iriam para Valhalla. Metade deles iria para outro salão, que é o Folkvangr, que é o salão da deusa Freya. Já tinha conhecido esse, Leonardo?

Leonardo: Conhecia por nome só. Todos eles assim, alguns eu conhecia só por nome. O que me chamou atenção nele foi ver que era também um local de guerreiros, então, como você falou, nem todos os guerreiros mortos ali iam para Valhalla, tem esse outro também. Aí eu fiquei curioso se tem algo que diferencia.

Leandro Vilar: Segundo relatos, que ele é citado no Grímnismál, que é um poema da Edda Poética – para quem não conhece, a Edda Poética é um manuscrito lá da Idade Média, mais ou menos escrito por volta do século 13, que a gente conhece propriamente, é um conjunto de poemas de autoria anônima. Ninguém sabe quem foi que escreveu, quem foi que organizou esses poemas. E, no Grímnismál, ele fala que, quando os guerreiros morriam, as valquírias iam lá para escolher as almas deles e metade iria para Freya. Por que metade iria? Bom, o poema não explica, só diz que metade ia. O salão Folkvangr é curioso que o nome dele significa campo dos exércitos ou campo do povo. Existe um certo conflito quanto ao significado exato, mas a gente tem ideia de que é um local que vai para guerreiro também. Só que, diferentemente de Valhalla, onde você tem uma descrição de como os guerreiros viveriam lá, Folkvangr não tem essa descrição, então a gente imagina que eles devem manter alguma coisa parecida com o Valhalla.

Leonardo: Mas então também não tem alguma coisa que diferencie, tipo, um guerreiro de tal tipo que vai para um e outro que vai para outro? Não se diferencia?

Leandro Vilar: Não, nos mitos não informam nada. Inclusive, a gente nem sabe como as valquírias fazem essa escolha, os mitos não informam. Também é preciso ter algo em mente: por exemplo, mito e religião não são a mesma coisa. Aqui eu estou baseando-me em um relato mitológico que tem a ver com crenças religiosas, só que, como a gente não tem acesso ao pensamento religioso nesse quesito, então a gente tem que se basear no mito, e o mito às vezes não dá todas as explicações. Então, se haveria diferença ou não de guerreiro para ir para Valhalla ou Folkvangr, fica só na hipótese, a gente não sabe.

Leonardo: É, e aí a gente vê como o Valhalla é bem mais conhecido quando você vê em mídias, tipo na série Vikings e tudo, essas coisas assim, você só vê o pessoal falando de Valhalla. Dificilmente você ouve esse nome. Eu mesmo só fui conhecer esse nome pesquisando os mitos mesmo, mas em mídias em geral o pessoal só conhece mesmo o Valhalla, e aí passa-se aquela ideia de que você era um guerreiro, morreu na batalha, vai para o Valhalla e, por você ser um guerreiro, é o que você sempre quis; e aí, se era outra coisa, iria para outro mundo. Mas não fica se citando muito – isso no popular, nas mídias. Por isso que eu imagino que, aos olhos das pessoas que não conhecem muito a fundo, fica bem com essa ideia de Valhalla ser o Paraíso e pronto, porque, já que é uma sociedade que é visto que teria um certo valor ali o guerreiro, então é algo que ele iria querer, mas nem cita-se outros mundos nessas mídias, é só quando você pesquisa mesmo a mitologia que você vê.

Leandro Vilar: É verdade, as mídias geralmente só citam mesmo Valhalla e Hel, como você disse no começo. Já vou até citar Hel daqui a pouco. No caso, eu chamo atenção que Valhalla é muito citado porque, mesmo nos relatos mitológicos e históricos, ele é o principal local que se tem referência. Então o que a mídia faz não está errado, em dar evidência a ele, porque é o principal local que a gente tem citado. Por exemplo, Folkvangr é citado como o local que acolhe metade dos guerreiros só em um poema. Aí depois a gente vai ter a saga de Egil, que é uma saga bem famosa de um poeta e guerreiro lá da Islândia do século 10, que tem um relato que diz: as mulheres também pensavam que, quando morressem, iriam para Folkvangr. Mas a gente só tem duas menções bem breves. Então é como eu disse, o mito não é a mesma coisa que religião: a gente não sabe até onde a crença religiosa imaginava que você também iria para Folkvangr. Se a ficar só no mito, então ele praticamente não aparece direito.

Leonardo: Então é natural que a popularidade do Valhalla seja maior mesmo.

Leandro Vilar: Até porque Odin também era um deus ligado à aristocracia, à nobreza, aos guerreiros, aos (chefes) [00:12:11]. Freya é uma deusa da fertilidade, ligada à fertilidade, à fecundidade. Ela e o irmão Frey também estão ligados à questão da agricultura, da pecuária. Então, se você pensar: o que atrai mais, é um deus guerreiro, um deus ligado aos (chefe) [00:12:27], aos reis, ou uma deusa da agricultura, da fecundidade, mesmo que ela receba também guerreiros? Aí acaba dando predominância mais ou Odin. Até porque tem que pensar que certos deuses eram mais adorados do que outros e, se a gente pensar que a sociedade escandinava da era viking era uma sociedade masculina predominantemente, então você vai dar mais preferência a deuses masculinos. Não quer dizer que o homem não pudesse adorar Freya ou outra deusa, não. Isso acontecia. Mas, nessa questão militar, Odin domina. E o curioso é que Odin não é um deus da guerra, o deus da guerra é o Týr, só que o Týr tem um papel mais nos mitos. A gente não conhece direito qual er ao papel religioso do Týr, o Odin que assume esse papel de deus da guerra propriamente.

Leonardo: Sim, sim, sim. Isso foi interessante, saindo um pouco da pauta, mas é uma curiosidade: é legal, porque, conforme eu também fui pesquisando para esse episódio, para outros, principalmente aquele do Odin, eu fui vendo essa ideia de o Odin ser um deus da aristocracia, aí com o tempo que vai puxando essa questão de ter algo relacionado à guerra ali, ao mesmo tempo que o Týr também seria um deus da guerra, mas aí dá ênfase ao Odin, que acaba sendo o deus-rei, entre aspas, ali, é o que lidera.

Leandro Vilar: Sim.

Leonardo: Aí você vê o motivo de colocar o Valhalla, ele ser o mais conhecido, você vê que vai tudo combinando. E aí eu vejo essa ideia de ele ser um deus da aristocracia, eu fico imaginando se isso que não ajudou também a manter mais conteúdo, tanto de Valhalla quanto do próprio Odin.

Leandro Vilar: Sim.

Leonardo: Eu imagino talvez um conteúdo que seja algo da aristocracia seja mais fácil de durar ali.

Leandro Vilar: Por exemplo, se você for pegar todas as menções aos mundos dos mortos na mitologia nórdica, Valhalla dispara em relação a todos. Também a gente precisa pensar que, na época da era viking, os poetas, que eram os skalds, vinham, alguns eram itinerantes, iam de vila em vila, cidade em cidade, procurando oferecer seus serviços aos senhores, a quem pudesse pagar, e, obviamente, a gente tem cortes em que você tem o poeta de corte, que é aquele poeta lá que vai cantar os feitos do rei ou falar sobre os heróis, os deuses. Então o que interessa mais para guerreiros, nobres, aristocratas, rei, é você ouvir histórias sobre Odin ou histórias sobre algum deus menor lá, desconhecido? Evidentemente que eles vão optar por uma divindade que os favoreça. Inclusive, se você pegar algumas sagas de reis, a genealogia de alguns monarcas vai remeter a sua origem a Odin, eles vão dizer: “Não, o meu antepassado que viveu há tantas gerações atrás era filho de Odin”, “Era filho de Frey” ou “Filho de Thor”. Então (inint) [00:15:15] essa questão: você usa os deuses para validar a sua linhagem também, e os poetas, como tinham que procurar mecenas, então eles iam recorrer a quem? A quem tem dinheiro, a quem tem autoridade. Você vai lá bajulá-los, vai cantar os seus feitos e evidentemente que essas histórias vão ter mais predominância em certos lugares. Não quer dizer que histórias sobre camponês, sobre outras questões não vão ter espaço; vão ter, mas, na hora de agradar à corte ou à reunião que o poeta está participando, ele vai dar preferência a certas histórias. Por isso que, como você disse, essa questão de o Odin estar ligado à esfera do poder da sociedade ajudou a difundir essas histórias sobre o Valhalla e o próprio deus em si.

Leonardo: Só uma dúvida referente… esses que a gente falou foram dois mundos de guerreiros. As mulheres que, por algum motivo, acabavam também sendo guerreiras, tem alguma citação se iriam para esses mundos? Fala-se algo assim?

Leandro Vilar: É interessante. Por exemplo, hoje em dia tem um debate que se questiona até onde a mulher guerreira na era viking é algo recorrente ou algo digamos que incomum. A gente não tem… por exemplo, evidências literárias. Eu já vi gente dizendo: “Ah, tem saga ou poema que cita donzela do escudo”, que é a Skjaldmö. Aquilo é evidência que prova a existência dela”. Não, aquilo é literatura, aquilo é mito. Por exemplo, você tem mito sobre Hércules. Isso prova que Hércules existiu? Não, não prova que ele existiu. As pessoas antigamente acreditavam na história dele? Poderiam acreditar. Até onde acreditavam, não se sabe. Mas isso não é prova. Então, se a mulher guerreira morresse em combate, ela iria para Valhalla ou Folkvangr? Nós não sabemos. Nenhum mito fala em mulheres sendo escolhidas por valquírias, só fala em homens. Porém, tem alguns relatos que dizem que a mulher iria acompanhar o seu marido ao Valhalla, ou seja, o marido morreu em guerra, a mulher morreu tempos depois – a esposa, no caso -, ela iria acompanhar o seu marido lá. Ou seja, o Valhalla então também teria mulheres se a gente pensar nesse sentido. Não é a guerreira em si, é a esposa do guerreiro. E também há casos de que um (chefe) [00:17:42] morria e se sacrificava uma escrava, que essa escrava iria acompanhá-lo na outra vida. Se ele iria para o Valhalla, provavelmente ela também iria junto. Então haveria mulheres nessa ocasião, mas a mulher guerreira, se ela iria também… a gente não tem como afirmar isso, porque as fontes não nos fornecem evidências para isso. Mas eu acho que, se tivesse essas mulheres guerreiras recorrentes, eu acho que elas deveriam também pensar em ir para algum canto referente a guerreiros, ou talvez elas iriam pensar em ir para outros lugares, como Hel ou Helgafell. Isso são só hipóteses. Não tem como afirmar isso.

Juliano Yamada: Eu lembro de um artigo, uns anos atrás. Eu não sei se você chegou a ler também ou se ele foi corroborado ou não, que eles tinham feito um estudo anatômico em vários túmulos de antigos guerreiros nórdicos e descobriram que existe uma certa porção até considerável deles que eram, na verdade, mulheres que foram enterradas com ritos e troféus, parecidas com guerreiros. E é sabido que os povos nórdicos, como faziam muitos registros em madeira, provavelmente esses registros se perdiam com o tempo, porque a madeira dura bem menos do que registros em pedras. Você tem como fazer essa associação, essa analogia também? Você sabe se eram reais mesmo esses estudos ou não?

Leandro Vilar: Essa questão das evidências arqueológicas, “Ah, encontrou o túmulo de uma guerreira”, isso tem que ter cuidado, porque tem arqueólogo e historiador que afirma que realmente era uma guerreira, mas tem um detalhe: entre os costumes fúnebres dos vikings, dependendo da sua condição social, você era sepultado não apenas com os seus pertences, mas também recebia presentes da família, de amigos ou, dependendo da sua relevância social, até da comunidade. Então ser sepultado com armas… a arma em si era considerada um bem precioso, era considerada também um presente. Então, ou seja, você encontra túmulos de mulheres sepultadas com armas, mas não significa que ela necessariamente seria uma guerreira, porque poderia ser só um presente. Porém encontraram alguns túmulos de mulheres com marcas que sugerem que fossem marcas de combate. Aí existe a hipótese de que elas seriam guerreiras. O problema é que nos registros históricos, a gente não tem praticamente nada dizendo que haveria mulheres guerreiras regularmente. Por exemplo, pode até ter havido mulheres que iam para o combate, mas uma coisa que a gente até hoje não conseguiu identificar é a ideia de tropa de mulheres como a gente vê em algumas séries, como a série Vikings, que a Lagertha está lá comandando uma tropa de 20, 30 mulheres. A gente tem que pensar que a guerra é algo exclusivo praticamente do mundo masculino. Aí alguns falam: “Ah, mas gregos têm as amazonas”, mas amazona é mito.

Leonardo: É mito, é.

Leandro Vilar: Inclusive, as amazonas eram outro povo, não era mulher grega que ia lutar. Aí alguns dizem: “Ah, mas eles têm Atena, Atena era a deusa da guerra”. Sim, mas Atena é a deusa da guerra mais voltada para a questão estratégica; é o Ares que vai para a porrada lá mesmo. Apesar que, na Ilíada, a Atena chega até a lutar lá na Guerra de Troia, mas você não vê tanta narrativa da Atena indo para o campo de batalha.

Leonardo: É, e é uma deusa, não são guerreiras ali. Ela também não estava liderando uma tropa feminina. É legal deixar isso claro, porque, realmente dos nórdicos, passa-se muito essa ideia assim, para quem está de fora: eles eram tão guerreiros, eles gostavam tanto disso aí que até as mulheres iam, porque, para nós, a gente não vê tanto isso, mas eles eram um povo tão guerreiro que até as mulheres… e é isso, tem que acho que tomar cuidado, não afirmar nada tão muito certo assim. Tem que realmente ver os registros que tem. Eu lembro – antes de ir para o próximo mundo -, lendo em algum artigo também que eu vi que talvez algumas mulheres fossem guerreiras, mas no sentido, assim, lutavam e, se alguém entrasse na casa e tudo, ela saberia se defender, mas não que ela fosse se tornar uma soldada, fosse para a guerra em uma tropa.

Leandro Vilar: Sim, porque a gente tem que pensar que grande parte da população da era viking era do campo, zona rural, então você tem uma casa de fazenda. Aí digamos que o marido, o irmão mais velho ou os filhos mais velhos saem para as excursões ou trabalhar em outro canto. Fica o que em casa? As crianças, as mulheres e os idosos. Então o local vai estar meio que… a segurança vai estar baixa. Então elas tinham que saber se defender, então o fato de ela saber se defender, levantar uma espada ou uma lança, arco e flecha, um machado, não quer dizer que elas tinham treinamento militar para ir para a guerra; elas estavam usando armas para se defender em casa e também defender a propriedade. Porque a gente tem que pensar que às vezes os homens poderiam passar semanas ou meses fora. Aí digamos que tinha bandidos lá e dizem: “Olha, aquela casa ali está sem nenhuma proteção, só tem mulher ali, vamos lá roubar”, então elas tinham que se defender.

[Trilha sonora]

Leonardo: O próximo mundo dos mortos que a gente tem aqui é o Bilskirnir, que é o salão de Thor.

Leandro Vilar: É, o Bilskirnir, eu vou salientar aqui que é uma hipótese. Ele não é nada concreto. Valhalla é concreto, sim, porque tem todas as evidências, inclusive até iconográficas; o Folkvangr, a gente tem evidências literárias falando disso; mas o Bilskirnir, como eu vou explicar adiante, é uma hipótese. Por que ele é uma hipótese? É porque ele não é confirmado. O nome Bilskirnir significa, pode ser traduzido como relâmpago, que combina com Thor, porque Thor é o deus do trovão. Bom, ele ficaria situado em Thrúdheim, que é o reino do poder. Presume-se que Thrúdheim seria em Asgard. A gente tem que pensar que a geografia dos nove mundos não é algo fixo, não existe mapa mostrando: “Ah, Asgard ficava lá, Jotunheim naquele canto, Hel ali, Muspelheim… não, não existe. Claro que hoje em dia a gente tem desenho, ilustração, mas isso é imaginação atual. Naquela época, não existia mapa. Fato esse que, se a gente pegar alguns mitos como Eldorado e Atlântida, vão ter vários lugares dizendo onde ficariam esses lugares. Sempre muda. A geografia mitológica não tem um lugar fixo normalmente. Bom, então quanto a Bilskirnir, no poema Grímnismál – inclusive tem tradução para o português, que foi até um dos membros do NEVE que fez a tradução…

Leonardo: Legal.

Leandro Vilar: … direto do islandês -, ele diz que esse salão seria tão grande ou maior do que Valhalla, possuindo mais de 540 cômodos. Por que 540 cômodos? A gente não sabe, só sabe que é citado isso no poema. Lá ele diz que lá viveriam o deus Thor e sua família. Thor, lembrando, era casado com Sif, tinha dois filhos e uma filha, apesar de que esses filhos dele mal são citados nos mitos; e, quando a gente vai para os quadrinhos da Marvel, (inint) [00:24:58] se vê mesmo isso. Aí a questão: por que o Bilskirnir é uma hipótese? Eu já li em alguns cantos que eles falam: “Ah, em Bilskirnir iriam os escravos e o povão, aquele que não fosse guerreiro – o camponês, o artesão, o comerciante iriam para lá”. Só que tem que ter cuidado, isso não é uma afirmação, isso é uma conjectura. Só existe uma breve menção de que Thor receberia os escravos. Existe um poema chamado Hárbarðsljóð, que é o Poema de Harbard, que ele está na Edda Poética também. É um poema curioso, que o Odin se disfarça de barqueiro e vai tretar com Thor, ele fica meio que zuando Thor lá. O Thor está viajando e tem que cruzar um grande rio, só que ele tem que pegar um barco. Aí ele encontra Harbard, que é o Odin disfarçado – ele não sabe que é o pai dele – e o Odin fica conversando com ele lá e meio que tretando com ele, lá na história. Aí tem uma hora que o Harbard diz: “Ah, Odin recebe em seu salão, o Valhalla, os guerreiros e os chefes, porém Thor recebe os escravos”. Aí qual é a questão? Isso seria uma afirmação de que Thor receberia a alma dos escravos ou é deboche? Existem essas duas possibilidades. O Odin pode estar debochando do Thor, dizendo: “Ah, você não é tão digno quanto Odin, você só recebe os escravos, enquanto Odin recebe os nobres lá”. Pode ser deboche dele, mas há quem considere que existe a possibilidade de que Thor acolheria as almas daqueles que não eram guerreiros. Uma outra sugestão para apoiar essa hipótese é que Thor era uma divindade muito cultuada por toda a Escandinávia. Em alguns lugares, ele era até mais cultuado do que o próprio Odin. Lá na Suécia, tem relatos de que Thor era tratado como uma divindade próxima do camponês. Aí eu te pergunto, Leonardo e Yamada, vocês sabem dizer por que Thor seria próximo do camponês, já que ele é um deus guerreiro?

Leonardo: Porque ele também é relacionado à agricultura, talvez pela questão do trovão, de estar relacionado com chuva, coisa assim?

Leandro Vilar: É a questão da chuva, porque Thor é o deus do trovão, também do raio, mas, consequentemente, da chuva. Não quer dizer que ele seja um deus da fertilidade, não. Isso aí é papel da Freya e do Frey. Mas, pelo fato de ele estar ligado a esses fenômenos atmosféricos, a população acaba fazendo analogia: “Ah, se Thor cria o raio, o trovão, eles vêm junto com a chuva, então, logo, Thor também manda chuva”, e a chuva é boa o quê? Para a plantação. Então o camponês às vezes orava também a Thor pedindo: “Thor, mande boas chuvas para a gente ter uma terra fértil e assim, consequentemente, um bom plantio”. Aí, partindo dessa conexão dele, alguns sugerem que poderia haver a crença – sempre lembrando, isso é uma hipótese – de que Thor acolheria essa parte da população que não se reconhecia como guerreiro. Por isso que eu digo, é no campo da hipótese, mas, que Thor teria conexão com o mundo rural, isso já é confirmado mesmo. Inclusive eu até escrevi um artigo analisando os bodes de Thor e a conexão dele com o mundo rural também.

Leonardo: O interessante dessa questão aí do Odin com o Thor… você falou também a hipótese de aquilo lá ser mais um deboche, me lembrou muito a ideia também do Odin ser da aristocracia, e aí o Thor, estando mais próximo do pessoal camponês, é mais fácil, é plausível que, então, contando essa história, você enalteça mais o Odin e rebaixe um pouco o Thor. Então do deboche também eu acho que tem um certo sentido, ainda que o Thor tenha essa ligação com o pessoal do campo.

Leandro Vilar: É, por isso que eu acho que há essa possibilidade de não ser algo literal: “Ah, você receberia os escravos”. Eu acho que pode ser um deboche mesmo, Odin zuando lá o Thor. Tem que lembrar que, apesar de você ver o Odin em algumas representações como um homem bem sério, o Odin às vezes é meio sarcástico, ele é meio malandrão lá em alguns cantos também. Ele não chega a ser igual ao Loki, mas Odin tem a dose dele, digamos, de ser cínico. Geralmente nas Eddas a gente não vê esse lado sonso e cínico do Odin, a gente vê mais nas sagas, principalmente saga lendária que a gente vê, às vezes tem lá: “Ah, Odin, eu cultuei você, eu fiz oferendas para você me dar sorte no campo de batalha, mas você favoreceu meu inimigo. O que foi que o meu inimigo fez que eu não fiz?”, aí fica meio que em aberto: Odin está agindo certo ou ele está meio que sendo sonso na ocasião?

Juliano Yamada: E dá para colocar um ponto também interessante em relação a quem reza para Odin, reza para Thor. Você reza para Odin esperando um resultado da batalha, mas você sabe que o resultado da batalha pode pender ou para um lado ou para o outro; você reza para Thor, no momento que tem uma trovoada, para ter uma boa chuva. A chance de ter uma boa chuva depois de uma trovoada é muito grande. Acaba pensando: “Ah, o Odin acaba não levando tão a sério a minha reza, porque ele balançou entre o meu adversário, mas a reza para o Thor é um pouco mais certeira”. Também é um pouco mais a crença popular, acho que até isso pode ser associado (inint) [00:30:14].

Leandro Vilar: O Thor também… a gente tem que pensar que o Thor é o deus que também fornece proteção. Por exemplo, uma vez até comentaram que isso é um pouco contraditório: “Ah, eu estou orando para Thor mandar chuva, mas vai que ele manda um raio?”, porém eu também oro para Thor me proteger de tempestade. É meio contraditório, quero que mande chuva, mas também eu não quero que ele mande raio.

Leonardo: É aquela coisa, você pensar que é ele quem controla isso, então você está falando: “Olha, vai com calma aí, eu quero só a chuva, mas, já que você controla o raio, não precisa…”. Bom, agora a gente vai falar de Hel. Hel também, acho que junto com Valhalla, é um dos mais conhecidos, e Hel tem muito a questão de ser identificado – quem já estuda, sabe que não é bem assim -, de se fazer uma analogia com o inferno cristão. A própria palavra tem relação, então muitas vezes a pessoa faz essa ligação, mas, quando você analisa mais a fundo, você vê que não tem a ver por não ter a mesma questão da punição. O Hel não tem isso aí, ele não é o oposto do Valhalla, seria.

Leandro Vilar: Alguns estudiosos, como a Hilda Davidson, que já é falecida, mas é um dos grandes nomes da mitologia nórdica, do estudo, ela traduzia Hel como túmulo ou cova. Então a gente pensar em Hel como sendo algo no chão, subterrâneo. Aí evidentemente que, quando os primeiros missionários cristãos vão chegar lá na Escandinávia, eles vão ouvir as histórias dos mitos, da religião deles, e vão dizer: “Ah, Hel? Se ele fica embaixo, na terra, então ele deve ser o inferno”, faz essa analogia. Inclusive, em língua inglesa, Hel gerou a palavra inferno em inglês também, Hell, com dois L. Só que, como você disse, Leonardo, quando a gente estuda Hel, a gente vê que não tem nada a ver com o inferno, ou pelo menos à primeira vista não teria. Por que à primeira vista? Isso inclusive é um motivo para outro artigo que eu estou escrevendo, que eu estou repensando o conceito de Hel como podendo ser inferno ou não, só que, como é algo mais complicado, eu não vou adentrar aqui. Mas, no primeiro momento, Hel não é o inferno. Apesar de que, quando a gente pega a versão de Hel lá da Marvel, ele é um lugar de fogo, só que, no mito, Hel é um lugar frio. Então já tem um contraste, porque a Marvel vai pegar Hel no sentido de ser inferno, mas isso aí é interpretação deles. Bom, sobre Hel: primeiro tem que se explicar que Hel é tanto nome de um local quanto o nome da deusa que rege aquele local, a deusa Hel. A deusa Hel é uma das três filhas de Loki com a Angrboda, que é uma giganta. Logo, Hel é irmã do lobo Fenrir e da serpente Jörmungandr, que é a serpente gigante que diziam que ela conseguia morder a própria cauda dando a volta no mundo, que, inclusive, é a serpente que luta com Thor no Ragnarök, e Fenrir luta com Odin. No caso de Hel, ainda jovem, ela foi banida por Odin para as profundezas do mundo. Por que ela foi jogada lá, o mito não explica, só diz que Odin baniu Jörmungandr para o mar, Fenrir foi preso em uma caverna e Hel foi banida para o subterrâneo. O mito não dá essa coerência. Um outro detalhe que chama, da deusa Hel, é que às vezes a gente vê ilustrações dela com a cara dividida, ela tem duas caras, uma face normal e a outra face de morta ou caveira. Aí vocês perguntam: isso tem no mito? Tem, mas tem um detalhe: na Edda em Prosa, que é a outra Edda, que foi atribuída ao poeta Snorri Sturluson, que foi bem famoso lá na Islândia do século 13. Nesse livro que ele escreveu, ele diz que Hel teria duas caras, uma cara viva e a outra cara seria morta, de um defunto. Porém, quando a gente pega menções a Hel na Edda Poética, diz que ela era uma mulher normal. Então a gente tem duas versões de Hel: a Hel das duas caras e a Hel normal. Ambas estão certas. Bom, como está lá na fonte mitológica, a gente tem que considerar que está certo. As pessoas viam dessa forma? A gente não sabe. Mas aí isso eu expliquei a deusa. Agora, vamos ao local onde ela governa. Hel ou Helheim é descrito como um local escuro, evidentemente, porque é subterrâneo, ele é frio e às vezes diz que ele seria meio que nevoento. Lá existiria o salão da deusa Hel, onde ela acolheria os mortos. Aqui já vem uma questão que é preciso separar: aí eu vou te perguntar, Leonardo e Yamada, quem iria para Hel?

Leonardo: Eu já ouvi falar que é quem morre de velhice e doença.

Leandro Vilar: Não está errado, mas existe um detalhe. Essa afirmação de que quem morria de velhice e doença iria para Hel consta na Edda em Prosa, da autoria do Snorri. O Snorri que diz isso. Porém, quando a gente pega outros relatos que citam Hel, eles não explicam o motivo de as pessoas irem para lá, só dizem: “Fulano morreu, vai para Hel”. Por que ele vai para lá, não se sabe. Então é precisa lembrar: o mito tem várias versões, então o mito de Hel tem várias versões. Em uma, é o doente e o velho que vão para lá, mas em outra não tem motivo. Fato esse que, quando o deus Balder morre, ele não morreu de doença e nem de velhice, e ele foi para Hel. Existe essa questão. Porque às vezes as pessoas leem isso e tomam como: “Ah, não, está dito, é velho e doente, pronto, então nada se encaixa”. Não, o mito pode ter várias versões. Então Hel tem essa questão. Existem várias possibilidades. Inclusive, você tem poema, como o Sonatorrek – eu não sei se pronuncia assim -, que é credito ao Egil, que foi, como eu disse, um poeta e guerreiro, que não se sabe se existiu. Ele teria vivido na Islândia. Esse poema é curioso, porque ele cita três lugares, que eu vou até retomar adiante: ele fala de Valhalla, ele fala de Hel e ele fala do Salão de Ran, que lá adiante eu vou falar disso. E o curioso é que ele diz: “O meu filho…”, um dos filhos dele, “… foi para Valhalla, mas logo eu vou morrer e irei para Hel”. Só que, como ele era guerreiro, por que ele não pensa em ir para Valhalla? Aí você pode dizer: “Ah, mas para Valhalla só vão os guerreiros que morreram em combate”. Nem sempre, porque às vezes tem guerreiro que não morreu em combate, mas ele esperava ir para Valhalla. Então a gente não pode tomar sempre como “Ah, isso aqui é fixo e não existe outra possibilidade”. Não, a crença é mutável, ela pode mudar.

Leonardo: Isso acaba passando um ideia popular de que, como o pessoal conhece mais Valhalla e Hel, fica aquela ideia assim: você é um guerreiro, morreu em batalha, vai para Valhalla, que, você sendo guerreiro, é o que você queria; e você não conseguiu isso, se você morrer de uma doença ou passar a batalha ali e envelhecer, aí você vai para Hel. Tipo, é o mundo de quem não conseguiu morrer em batalha. Passa-se popularmente essa ideia. Tanto, no próprio seriado do Vikings, às vezes chegou acho que a mostrar um personagem assim, que ele queria morrer logo ali na batalha para ir para Valhalla, ele tinha medo de não conseguir morrer ali na luta, por medo de ir para Hel. Então popularmente acaba passando um pouco essa ideia.

Leandro Vilar: É, tem essa ideia, porque essa ideia surge a partir da interpretação do mito, mas, como a gente não tem uma interpretação da crença religiosa, aí a gente tem que se basear no mito. Claro que às vezes a pessoa interpreta de forma até literal, que mito não deve ser levado ao pé da letra, tem que ter cuidado. Bom, falando sobre Hel, um último ponto a destacar: por que Hel não seria o inferno? Porque Hel não tem punição. Todos os relatos que a gente tem sobre Hel, em nenhum deles fala que lá os mortos seriam punidos. O que faz o inferno ser o inferno é a punição, é o castigo final. Então, em outro artigo que eu estou escrevendo, eu analiso Hel pela perspectiva de: não, Hel não é o inferno como local de punição, mas Hel poderia ser uma outra categoria de inferno, que hoje em dia a gente não usa, mas na Idade Média existia. Isso é interessante, mas isso é tema para outro estudo. Se vier a ser publicado, talvez eu possa vir aqui em outra ocasião e comentar sobre isso.

Leonardo: Legal, já esteja convidado aí se der tudo certo.

Leandro Vilar: Eu agradeço, porque aí o negócio lá é interessante para caramba, porque lá eu vou tratar que… ou seja, os cristãos não estavam tão errados em pensar em Hel como uma ideia de inferno, não, mas não é o inferno punitivo, seria um outro tipo de inferno.

Juliano Yamada: A forma da descrição me lembra acho que era o Cócito, da Divina Comédia, que era aquele inferno de gelo. Era inferno de gelo ou era rio de gelo? Era um lago.

Leandro Vilar: Só que tem um detalhe: o Cócito, na mitologia grego, não tem gelo. Isso aí é o Dante que colocou lá na Divina Comédia.

Leonardo: Sim, sim.

Leandro Vilar: Mas o interessante é que, na Idade Média, existiam relatos apócrifos, sobre o inferno que falavam que existia gelo e neve no inferno. Porque a gente sempre pensa: “Ah, o inferno sempre é um lugar quente, com fogo, fumaça”, porque, no próprio Apocalipse, lá no final diz: “E Satanás e os demônios, e todos aqueles que não receberam o perdão no Juízo Final, seriam condenados ao lago de fogo e enxofre”. Certo, porém a gente tem que pensar que existe uma literatura religiosa não canônica, e nessa literatura não canônica o inferno teria gelo e neve também. Isso é interessante. Então Dante não inventou essa questão do inferno de gelo.

Juliano Yamada: Ele pegou de alguma origem, de alguma fonte. E, por mais que seja uma coincidência, e podem haver coincidências mitológicas, é interessante que seja um elemento similar.

Leandro Vilar: Bom, o Dante, a Divina Comédia dele é baseada muito em dois tipos de literatura vigentes na Idade Média, que são os Apocalipses apócrifos e as visões do inferno e Paraíso. Oficialmente, de forma canônica, só tem um Apocalipse, que é o que está lá na Bíblia. Porém, não canonicamente, existem mais de 40 apocalipses. É muita coisa.

Leonardo: Uau, não imaginava tanto.

Leandro Vilar: São mais de 40, e alguns desses apocalipses, como o de Paulo e o de Pedro, falam do inferno gelado. Isso lá no século quarto, sexto, por aí. Tem que lembrar que esse apocalipse, quando a gente fala Paulo e Pedro, não quer dizer que foram os apóstolos que escreveram. É porque alguém escreveu e atribuiu aos apóstolos. Isso era comum, você escrevia um texto; para dizer que ele era relevante, você atribuía a alguém, principalmente se fosse alguém religioso. Então, nesses apocalipses apócrifos, eles falam de inferno com gelo, com neve, com dragão, com cobra, com monstro, enfim, várias coisas. Aí evidentemente que Dante deve ter tido contado, provavelmente, com algum desses textos que circulavam na época e isso o inspirou. A outra fonte que eu citei são as visões. As visões também são curiosas, que algumas foram escritas por religiosos e outras foram por pessoas que eram letradas, que disseram que tiveram aquela visão ou ouviram falar da história. Como é que é essa visão? Certo dia o cara está dormindo e ele sonha que foi para o inferno. Não é um sonho agradável, mas o cara diz que viajou para o inferno. Bom, aí ele vai descrever o sonho dele: “Ah, eu estava sonhando e fui para o inferno, encontrei isso, aquilo e aquilo lá”. Pronto, aí ele vai lá e revisa a visão. Um outro diz que estava passeando em um canto e teve um vislumbre e testemunhou o Paraíso ou o inferno. Aí, sobre a literatura de visões, são dezenas de visões. Então você tem várias descrições sobre inferno, sobre Paraíso, algumas inclusive são até contraditórias ao que tem na Bíblia. Isso aí é tudo literatura. Então o Dante se encaixa nessa parte, a Divina Comédia é baseada nesses escritos.

[Trilha sonora]

[Bloco de recados]

[Trilha sonora]

Leonardo: A gente tem alguns próximos aqui que, realmente, esses eu conheci pesquisando aqui para o episódio, sabe? São coisas que eu não tinha ouvido muito falar, não. O próximo é o Salão de Ran, que você já tinha citado.

Leandro Vilar: Existe sim uma evidência escrita, mas a gente não sabe até onde ia a crença nesse local.

Leonardo: Também então são pouquíssimas informações mesmo, não é, também?

Leandro Vilar: São poucas informações.

Leonardo: No caso, eu ouvi falar que é de quem morria afogado.

Leandro Vilar: Sim, tem a ver com isso. A Ran era uma deusa do mar. Até onde ia o papel dela, a gente não sabe. (Inint) [00:44:04] “Ah, mas o Njord não era o deus do mar?”, sim, Njord era, mas a questão é que, no mar, existem várias divindades. Se a gente pegar a mitologia grega, a gente lembra de Poseidon, mas, se você for estudar, tem trocentas divindades do mar.

Leonardo: Sim.

Leandro Vilar: O mar sempre teve muita divindade. No caso da mitologia nórdica, a gente tem o Njord, que é o principal, mas tem a Ran. A gente não sabe até onde vai o papel da Ran. A Ran às vezes é citada em alguns poemas, até nas Eddas. Ela era casada com o Aegir, que era um gigante, que era amigo dos deuses. Isso é importante dizer: nem todo gigante é inimigo dos deuses. A gente tem que começar pelo próprio Loki, apesar de que o Loki é um caso à parte, porque o Loki vive com os deuses, mas também ferra com os deuses.

Leonardo: Sim.

Leandro Vilar: Então ele é um caso à parte. Mas o Aegir não, o Aegir era aquele bom gigante que não causava problema aos deuses. Inclusive, ele até fazia banquetes aos deuses. Tem até um poema famoso, quem quiser ler, que é o Lokasenna. Ele faz parte da Edda poética. Não tem tradução oficial para o português, mas pode encontrar em espanhol, em inglês. Eu acho que deve ter até tradução digamos que amadora na internet. O Lokasenna é interessante. O Aegir faz esse banquete aos deuses e evidentemente que o Loki vai causar discórdia lá, mas o curioso é que a Ran não aparece nesse poema, quem destaca é o marido dela. Mas, voltando para a Ran, ela é casada com o Aegir e eles têm nove filhos. Lembrando que o nove e o três são números simbólicos, eles sempre aparecem várias vezes nos mitos. Aí a questão: onde é que tem relato dizendo que os afogados iriam para o Salão de Ran? É o poema Sonatorrek, que eu disse anteriormente. Alguns traduzem esse poema como Aos Meus Filhos Mortos. Por que Aos Meus Filhos Mortos? Porque é um poema dedicatória. O Egil, que eu já citei para vocês, escreve esse poema, que ele é bem dizer uma elegia, ou seja, é um poema meio que com um tom fúnebre, é um tom triste, porque ele disse: “Eu vou escrever esse poema para honrar os meus filhos. Um morreu e foi para o Valhalla; eu, quando morrer, irei para Hel. Porém outro filho meu morreu no mar, e ele agora reside no Salão de Ran”. Pronto, é isso aí, é bem breve: “Ele reside no Salão de Ran”. Aí o que os pesquisadores fazem? “Ah, aqui está dizendo que o cara que morreu afogado foi para o Salão de Ran”, então todo mundo que morreu afogado vai para o Salão de Ran? Não sabemos, é uma hipótese. A gente encontra isso aqui, é uma hipótese, então fica em aberto também. Existe sim o relato dizendo que o cara que morreu afogado foi para lá? Existe, mas até onde é essa crença, a gente não sabe.

Leonardo:Como a gente falou, é pouca informação que tem dele para realmente afirmar algo com certeza, não é? E aí a gente tem também um outro, que são as montanhas sagradas. Aí desse eu não cheguei a ver quem iria para lá, se tem-se ideia de algum tipo de pessoa, algum tipo de morte que iria para esse local.

Leandro Vilar: Bom, a montanha sagrada em nórdico antigo é Helgafell. Helgafell é o nome de uma montanha-vulcão na Islândia. Realmente existe na Islândia, você até pode procurar no Google aí. Se botar Helgafell, vai mostrar que é um vulcão lá na Islândia. Porém Helgafell aqui não estou me referindo a essa montanha na Islândia, estou me referindo ao conceito. O conceito diz que haveria a crença de que as pessoas acreditavam que os mortos não iriam para outros lugares, como Asgard ou Hel; eles iriam para salões que ficavam dentro de montanhas, por isso que é a montanha sagrada, isso é um conceito. Tem um artigo bem antigo, da década de 40, de um escadinavista – eu acho que ele era norueguês -, o nome dele é (inint) [00:47:47]. Ele escreveu um artigo de 40 páginas para explicar essa questão de Helgafell. Ele comentava que a crença em montanhas sagradas como sendo o lar dos mortos teria sido algo regional e influenciado por sincretismo religioso, sendo visto principalmente na Noruega, depois na Islândia e na Suécia. No caso da Islândia, ele cita algumas sagas, que eu vou aqui dizer o nome delas, que fazem menção a isso. Uma das sagas é a Eyrbyggja Saga, que seria a Saga do Povo de Eyrr, a qual se passa na Islândia, e existe um relato de que um tal Thorolf acreditava que a alma do filho dele, que foi sepultado em uma montanha, viveria em um salão dentro daquela montanha. Isso é interessante, ou seja, ele não está dizendo: “Meu filho não foi para Hel, não vou para Valhalla, não foi para outro nenhum lugar; ele vive em um salão dentro daquela montanha”. Aí a outra saga que o (Nordland) [00:48:40] cita é a Brennu-Njáls Saga, que é a Saga de Njáll, o Queimado. Essa saga tem tradução para o português, inclusive foi até um trabalho de pós-graduação. É só vocês procurarem Brennu-Njáls Saga em português, não deve ser difícil de encontrar, não. É interessante que tem um relato nessa saga que os pescadores que viviam em um lugar chamado (inint) [00:49:04] falavam que um dos membros deles, que faleceu, morava dentro da montanha, ele vivia em um salão dentro da montanha. Aí vocês perguntam: quem iria para esse salão na montanha? Bom, pelo que a saga dá a entender, qualquer pessoa, não havia uma distinção: homem, mulher, criança, idoso. Qualquer, independentemente da causa da morte, iria para esse salão nas montanhas. Só que é como (inint) [00:49:30] sublinha: existem poucas menções a esses salões. A gente não sabe até onde iria a crença nesse lugar.

Leonardo: Interessante. Dá-se a entender que de repente é algo localizado ali, tipo, a crença disso aí, porque esse realmente vai de encontro com os outros ali, já que teoricamente qualquer pessoa iria para esse local, então de repente uma crença localizada. Aí a gente vê como realmente as crenças nórdicas não seriam algo uniforme.

Leandro Vilar: Quando a gente lê em livros, são versões que se popularizaram mais do que outras e foram compiladas. Toda complicação parte de um motivo, sempre tem um interesse, e como esses mitos foram compilados há séculos, a gente não conhece qual era o interesse do autor. O autor não vai escrever lá: “Eu escolhi esses mitos porque eu achei interessante, por causa disso”, não. A gente não sabe por que ele escolheu isso. Então, é como disse, não é uniforme. Ou seja, é como o autor aqui diz, isso é uma crença regional. Havia várias crenças regionais pela Escandinávia. Em alguns lugares, você poderia crer que iria para essas montanhas, mas em um outro você pensava que iria para Hel, ou para Valhalla, ou para Folkvangr, enfim. São crenças que coexistiram lá em vários lugares ao mesmo tempo, porque a religião nórdica não era dogmática, ela não tinha doutrina. Quando uma religião não tem doutrina, não tem dogma, ela permite que várias crenças coexistam ao mesmo tempo. Apesar que mesmo religiões com doutrina e dogmas não impedem que várias crenças surjam, por exemplo, a gente pega o cristianismo. O cristianismo é uma religião com doutrinas e dogmas, mas ao longo da história surgiram várias doutrinas contrastantes à bíblica.

Leonardo: Bom, e aí a gente vai para mais um desses locais, que é a ilha de Gefjon.

Leandro Vilar: Aqui é uma outra hipótese. A deusa Gefjon aparece em poucas narrativas e seria considerada uma Vanir por estar associada com a agricultura, especialmente a ideia de arar os campos. Os Vanir são uma das duas famílias de deuses nórdicos. Os Aesir, que são os deuses ligados à guerra, ao comando, como Odin, Thor, e os Vanir, que são os deuses ligados à questão natural: o campo, os animais, a pecuária, a caça, a agricultura, que são o Njord, a Freya e o Frey. Gefjon seria uma Vanir, por estar associada com o campo? Talvez, mas há relatos na Edda em Prosa que dizem que ela seria uma Aesir. Então fica meio que essa dúvida. A segunda informação é que Gefjon também às vezes é confundida com Freya, porque poderia ser um epíteto de Freya. Os deuses nórdicos, alguns, como Freya e Odin, têm vários nomes, então há teóricos que defendem que Gefjon também não fosse uma deusa, mas seria outro nome para Freya. Só que tem um problema, porque no poema Lokasenna, que eu citei para vocês, as duas deusas aparecem, estão Freya e Gefjon lado a lado. Então não tem como ser a mesma pessoa. Isso pode ser uma questão de versão. Em alguns relatos ela é descrita como uma deusa virgem, mas em outras ela teria um marido, mas aqui eu vou tocar na questão da virgindade dela. Se ela for considerada uma deusa virgem… na Edda em Prosa, que é atribuída ao Snorri, ele cita que no Salão de Gefjon ela seria servida por mulheres virgens. Então isso gerou uma hipótese: ora, se Gefjon é servida por mulheres virgens, significa que toda mulher virgem que morreu foi para o salão dela, a Ilha de Gefjon – isso é uma hipótese, a gente não tem nada concreto. O Snorri não diz isso, ele só diz: “Olha, ela é servida por virgem”. Como elas chegaram ali, eu não sei, por isso que eu disse, é uma hipótese. Eu cito aqui porque existe essa hipótese.

Leonardo: É, também é algo que tem pouca informação mesmo, não é? A nível de ficar só mesmo como hipótese em si.

[Trilha sonora]

Leonardo: Bom, e aí a gente vai para o Nastrond agora, que esse que é o foco do artigo. Aí, no caso, ele sim realmente tem um quê mais punitivo, e isso é o que o difere aí dos outros mundos dos mortos.

Leandro Vilar: Porque, como a gente viu: Valhalla, Folkvangr, Bilskirnir, Hel, a montanha dos mortos, Salão de Ran, a Ilha de Gefjon, nenhum deles tem punição. Mesmo Hel não tem punição. Porém Nastrond – não sei se foi a pronúncia correta – tem punição. Aí o que significa o nome Nastrond? O nome Nastrond significa Costa dos Cadáveres, então você tem uma noção de que é um nome tenebroso. Você imagina o local: uma costa, ou seja, uma praia, com cadáveres boiando na água ou lá na terra. Quando eu digo imaginar é porque a fonte não diz isso, mas a gente meio que imagina que poderia ser isso que daria o nome. Aí onde você pode encontrar o relato de Nastrond? Nastrond é mencionado só em duas fontes conhecidas. A primeira é no poema Völuspá, que se encontra na Edda Poética. Vocês podem encontrá-lo nas estrofes 38 e 39 desse poema. Existem outras versões do Völuspá que mudam a estrofe, mas o conteúdo é o mesmo. Antes de falar em Nastrond, eu vou comentar o que seria o Völuspá. É um poema ligado com a adivinha. A palavra Völuspá vem de völfa ou völva, que seria um termo nórdico para vidente, adivinha. Völuspá pode ser traduzido como A Profecia da Vidente ou A Profecia da Adivinha. As pessoas meio que mudam a forma de traduzir, mas é mais ou menos isso. Nesse poema, o Odin revive uma adivinha, a völva, e começa a conversar com ela sobre questões do mundo. Aí ela vai comentar sobre a origem do mundo, a origem da humanidade, dos gigantes, dos anões, dos elfos, até chegar ao Ragnarök. Em dado momento da conversa dela com Odin, ela fala de Nastrond. O que ela diz sobre esse lugar? Ela fala: “Nastrond seria um local longe do sol, cujas portas estariam voltadas para o norte. Ali haveria um salão feito de ossos de cobras e, no teto, haveria buracos onde se encontrariam serpentes despejando veneno. Dentro do salão, os mortos que para lá foram andariam quase que em um rio de veneno”. Então vocês podem notar que é um lugar bem sombrio: cobra, veneno, lugar escuro. Na versão do Völuspá, é dito que os assassinos, os perjuros e aqueles que assediaram mulheres casadas iriam para Nastrond. Daqui a pouco eu retomo essa questão dos criminosos. Ainda no relato do Völuspá, ele diz que, além das cobras lá, haveria também um dragão chamado Nidhogg, que aparece em outras narrativas. No caso de Nastrond, esse dragão estaria sugando os mortos. Aí você pensa: sugando, isso soa estranho. Bom, está escrito lá no poema. Por que ele fazia isso, a gente não sabe, está escrito ali. E além do dragão haveria um lobo, que não tem nome, que devoraria os mortos. Então esses são os animais que punem os mortos em Nastrond.

Leonardo: Cita o Nidhogg e o lobo, mas nenhum momento mostra nenhum deus que estaria relacionado a isso, não é?

Leandro Vilar: Não tem. Isso é curioso, porque Nastrond e as montanhas sagradas não têm divindades associadas. Os outros locais sempre têm algum deus que meio que comanda o local ali, mas Helgafell e Nastrond não têm nenhuma divindade associada. Como eu disse anteriormente, são duas fontes. A outra fonte, para quem quiser consultar, é a Edda em Prosa. Na Edda em Prosa, lá no finalzinho do Gylfaginning – Gylfaginning é uma das quatro partes da Edda em Prosa -, o Snorri diz, ele vai citar novamente: “Olha, existe Nastrond…”, ele vai repetir tudo: “É um local longe do sol, cujas portas são viradas para o norte”. Por que viradas para o norte, a gente não sabe ao certo, é uma questão simbólica. Aí ele vai dizer lá: “As paredes eram feitas de ossos de cobras, teria serpentes lá no telhado gotejando veneno”. Ele cita novamente o dragão, porém ele não fala do lobo. Na versão dele, não tem lobo, e ele também só cita dois crimes: os homicidas e os perjuros. Os perjuros são os traidores. Ou seja, aqui a gente tem duas versões de Nastrond: a versão do Völuspá e a versão da Edda em Prosa.

Leonardo: Esse lobo… não chega a citar quem seria, não é? Tem alguma ideia se seria algum dos outros… que tem outros lobos que são nomeados em outras narrativas nórdicas, tudo, mas aí, no caso, não chega a nomear, não se tem ideia de quem seria, não é? Se seria algum novo ou algum deles, não é?

Leandro Vilar: Não tem, porque, por exemplo, já teve gente tentando interpretar como Fenrir, só que é problemático, porque Fenrir está preso em outro canto e Fenrir só é solto no Ragnarök. Então não tem como afirmar que o lobo em Nastrond é Fenrir. E Fenrir também teve dois filhos, Skoll e Hati, mas o Skoll e o Hati são os lobos que perseguem o sol e a lua.

Leonardo: Já têm papéis definidos, não é? O que me chamou a atenção foi quando eu vi a questão do Nidhogg, porque, para mim, Nidhogg sempre foi em outro local, que ficava mesmo nas raízes da Yggdrasil, mordendo… Nidhogg muitas vezes, quando você encontra, é falando isso, não é? Que é o dragão que fica roendo as raízes da Yggdrasil, não necessariamente citando de estar nesse local. Só que aí, nesse caso, ele é realmente nomeado.

Leandro Vilar Porque como os mitos têm várias versões, então a gente tem uma versão que o Nidhogg está lá roendo a raiz, não se sabe onde, e, na outra versão do mito, o temos presente em Nastrond. Mas, se a gente pensar: raiz geralmente fica embaixo da terra, então, se a raiz evidentemente está embaixo da terra, Nastrond talvez fique debaixo da terra. Então ele está ali no submundo, circulando ali no submundo. A gente pode até brincar nesse ponto aqui, que a hora que ele vai lá atacar os condenados ali, ele vai roer a raiz da árvore. Isso aqui é uma brincadeira que fazemos, porque o mito distingue isso.

Leonardo: Fiquei curioso com também a questão da localização, porque, como tem esse negócio, o dragão está roendo raiz, imaginar de ele ficar embaixo da terra, e o próprio jeitão que é descrito o local, seria um local subterrâneo. E aí onde estaria localizado o Nastrond? Olhando assim, ele passa aquela ideia – apesar de não ter fogo nem nada assim – do que o Hel é às vezes atribuído, algo subterrâneo, de punição e tudo, o inferno. Agora, você olha assim, você vê o Nastrond com esse estilo, uma pela questão das serpentes e tudo e por ter um dragão que é o mesmo dragão que rói as raízes, então você imagina ser algo embaixo da terra, mas ele está nesse local.

Leandro Vilar: Sobre a localização, nas fontes ele não explica, ele não deixa explícito onde ficaria. Lá no Völuspá, Nastrond aparece em duas estrofes no meio do poema lá, meio que alguém inseriu aquilo, parece que não fazia parte do roteiro da narrativa, e lá não diz onde fica. Porém, como ele diz, ele ficava longe do sol, geralmente o pessoal interpreta isso como sendo o subterrâneo. Aí tudo bem. Aí vem a questão do dragão: Nidhogg é descrito como roendo a raiz – raiz embaixo de terra -, então isso combina com a ideia de longe do sol, de estar no subterrâneo. Tudo bom. Então a gente pega o relato lá do Snorri, que ele fala que perto de Nastrond teria um lago, que é o (inint) [01:01:14], e esse lago ficaria no subterrâneo. Então três pontos, tudo combinando, tudo no subterrâneo. Só que tem um porém: tem alguns relatos, como no Grímnismál, o poema lá, que esse lago que eu citei não fica embaixo da terra, ele fica acima, na superfície. Aí você pode dizer: “Então quer dizer que Nastrond também fica na superfície?”. Não necessariamente, porque é como eu disse, geografia de mito não é precisa, então o lago pode aparecer em vários lugares e o pessoal está de boa, ninguém vai queixar: “Porque nessa versão ele está em cima da terra, na outra ele está embaixo”. Não, não tem esse problema. Então, ao meu ver, Nastrond estaria no subterrâneo. Porém existe um detalhe: Nastrond, como eu disse, é a costa dos cadáveres. Costa sugere praia, então você vai pensar: “Ah, tem um mar no subterrâneo?”. Não sei, os mitos não falam, mas, se a gente for considerar a geografia, então Nastrond teria que ser na superfície, apesar de que tem gente que interpreta que a costa de Nastrond não seria o mar, mas seria o lago, que fica perto dele. Mas isso são conjecturas, isso aqui a gente nem adianta entrar em detalhe, porque isso aqui a gente vai ficar divagando a respeito.

Leonardo: Mas ainda assim, que tenha essas conjecturas, os Nastrond é algo oficial, diferente de alguns outros, que você falou que eram mais hipotéticos.

Leandro Vilar: Sim, sim.

Leonardo: Mesmo que não se conheça tanto, o Nastrond existe; em alguma narrativa, em algo ali foi citado.

Leandro Vilar: Pelo menos nos mitos mesmo é oficial lá, tem lá: Nastrond é o local que três tipos de criminosos seriam punidos. Isso aí a fonte confirma mesmo. Como seria a crença a nível de religião, a gente não sabe. Se Nastrond seria algo só do mito ou ele teria também respaldo religioso, que a pessoa poderia pensar: “Ah, não vou ser assassino porque senão, se eu morrer, eu vou para Nastrond”. A gente não sabe se tinha essa ideia. Mas quanto aos crimes em si, isso aqui é um ponto interessante: por que Nastrond seria um local de punição? Alguns autores, desde lá do século 19, disseram: “Nastrond seria uma invenção dos cristãos”. Já que Hel não é um lugar de punição, para o Cristão tem que ter um inferno, porque isso faz parte da doutrina. Aí esses autores vão dizer: “Ah, algum cristão inventou Nastrond para ser o equivalente ao inferno, para pregar lá para os pagãos”. Bom, isso é uma hipótese que não tem muito embasamento, a gente não pode afirmar que algum clérigo, seja um padre, um freio, inventou isso, até porque os elementos simbólicos de Nastrond – serpente, dragão, lobo, veneno – não existem na Bíblia. Na Bíblia, quando eu digo, relato do inferno. É como eu disse, se a gente pegar o inferno lá na Bíblia, é fogo e enxofre, não tem dragão, não tem cobra, não tem veneno e não tem lobo. Aí alguém vai dizer: “Ah, mas, lá no Apocalipse, Satanás é comparado a serpente ou dragão”. Sim, ele é comparado, mas não quer dizer que ele tenha essa forma e esteja lá no inferno tocando terror lá nos mortos.

Leonardo: Seria mais fácil terem posto a questão de ter fogo, coisa assim, não é? Se fosse para usar os elementos do inferno mesmo.

Leandro Vilar: Ao meu ver, lá no artigo que eu escrevi, Nastrond seria oriundo de sincretismo, ou seja, pode ter influência cristã pelo lado de ser um lugar de punição, de castigo aos criminosos lá – lembrando que pecador também tem a noção de criminoso, porque ele transgrediu a lei de deus, então a gente pode fazer essa analogia -, mas Nastrond também tem elementos que são próprios da cultura nórdica, que são a serpente, o dragão, o lobo, o salão. Então dizer que isso é uma criação puramente de religiosos cristãos, eu acho que não é correto. Para mim, ele é um sincretismo, ao meu ver, mas por que ele foi inventando, a gente não sabe; quem inventou, também sabe. Só sabe que ele existe ali.

Leonardo: Uma coisa que eu fiquei ainda na dúvida é assim: é dito que é onde estão os assassinos, os traidores, mas é dito que eles são realmente punidos ou só que eles estão lá e aí se tem a ideia de serem punidos porque seriam criminosos? Porque uma coisa é a pessoa ir para lá por ter sido assassina, outra coisa é ela ir lá e ser realmente punida. A ideia da punição é confirmada?

Leandro Vilar: Lá no poema, ele não deixa claro: “Ah, o cara era punido assim”, não. Ele deixa subentendido, por exemplo, ele diz: “O lobo ataca os mortos”, isso é punição; “O dragão, Nidhogg, ataca os mortos”, é punição; “Eles andam em tormento no veneno”, punição. Não está escrito assim: “Ah, e lá eles foram castigados”. Dá para se concluir que é um lugar ruim que os caras iam ser punidos ou pelo menos atormentados, porque, quando se fala em punição, tem que se falar em julgamento, quer dizer que alguém está julgando-o. Só que também não existe essa questão de julgamento, então é melhor dizer tormento: os caras estão sendo atormentados. Eu vou falar sobre essa questão dos crimes, que é bem curioso. Por que assassino, perjuro, ou traidor, mentiroso, e os caras que deram em cima da mulher dos outros? Aí vocês podem perguntar: “Ah, mas os vikings eram uma sociedade violenta, belicosa, guerreira. Teria pena para quem matasse?”, aí que está. A gente pensa que… o estereótipo do viking mostra-o sempre como aquele cara bruto, violento, que guerreia toda hora. Não é bem assim. Viking inclusive era uma ocupação. Há quem compare viking com o conceito de pirata, aquele que se lança ao mar e que vai cometer crimes de pilhagem, ou, como Jack Sparrow dizia, a boa pirataria. Só que nem todo homem se tornava viking. Tinha o cara que era agricultor, ferreiro, artesão, comerciante. O próprio Ragnar Lothbrok, lá no começo da série Vikings, era agricultor, não sei se vocês se lembram, mas ele estava lá com a Lagertha e os filhos, ele tem a fazendinha dele lá. Ele era agricultor, aí chegava a temporada de verão, primavera, o earl comentava lá: “Olha, estou precisando de guerreiros aqui para a gente fazer excursão”, aí o Ragnar ia lá, se oferecia, aí ele virava um viking na ocasião. Só que matar em combate é uma coisa, matar sem ser em combate é outra. Por exemplo, a Nastrond iriam aqueles que mataram digamos que de forma desleal. Se a gente for pegar as leis dos vikings, existia punição para quem cometesse assassinato de forma covarde, desleal, ou se você estava brigando por uma coisa banal e matou outra pessoa – ele era punido, não ficava isento. Aí vocês podem pensar: “E o cara era punido com o quê? Com morte?”, não necessariamente. O curioso é que existiam basicamente três formas de você punir um assassino, isso falando em lei mesmo que existiu: o cara era banido da comunidade – inclusive, dando um spoiler aqui da série Vikings, na sexta temporada tem uma hora lá que o Bjorn bane um bocado de criminoso, e entre os criminosos têm assassinos. Então o assassino poderia ser simplesmente banido da comunidade, ele não precisava pegar pena de morte ou ser preso. Uma outra forma de lei era o direito à vingança. Aí é curioso, porque dependendo de quem morreu, o parente ou um amigo poderia pedir lá judicialmente o direito de se vingar, aí daria o direito a ele de matar o outro. Então evidentemente que não… existia pena de morte de duas formas: ou o cara era condenado à forca ou decapitação ou ele era condenado a lutar pela vida dele, direito de vingança.

Leonardo: É isso que eu ia perguntar. Essa questão da vingança, como que era. Se era assim: você tem o direito de se vingar, então você pode ir lá e matar; ou se, caso você o mate, está tudo bem; ou se ele já colocava a pessoa ali quase como uma pena de morte, assim.

Leandro Vilar: Bom, se a pessoa executasse pelo direito de vingança, tendo testemunhas – é meio que um duelo, tem que ter testemunha lá para garantir que o cara está cumprindo a lei, porque você pode evocar o direito de vingança, o cara está dormindo e você invade a casa dele, esfaqueia ele e pronto. Não, não é bem assim. Tudo bem que você evocou o direito de vingança, mas tem que seguir meio que os parâmetros da lei. O problema é que nem sempre o pessoal seguia os parâmetros. Quando você pega a Islândia, as sagas de famílias, existem tipos de vingança a rodo. Você tem narrativa lá que os caras ficam gerações se vingando: “Ah, você matou o meu primo”, “Você matou o meu cunhado”, eu vou lá e vou me vingar.

Leonardo: É uma bola de neve.

Leandro Vilar: Aí fica bola de neve. “Você não respeitou o direito de vingança, porque tinha que ter testemunha, tinha que ter pedido à assembleia que você estava pedindo direito de vingança, mas você cumpriu sem pedir autorização”. Aí ficava nessas confusões. Só que eu citei tudo isso para dizer que existia lei, sim, para punir os criminosos, quem matasse de forma digamos que injusta ou incorreta. Mas por que esses assassinos iriam para Nastrond? A gente não sabe, a fonte não diz. A fonte só diz que o cara que cometeu assassinato, principalmente aquele cara que cometeu assassinato de forma criminosa, ia estar condenado para lá. Por que a gente não sabe.

Leonardo: É, até porque não tinha algo, tipo uns dez mandamentos, assim, para mostrar: “Olha, tal coisa é errada, tal coisa é pecado”. Não tem isso.

Leandro Vilar: É, não tem, não existe o não matarás. Porque isso é interessante, existia lei sim, as leis eram orais. Existia lei: “Ah, você não pode fazer isso porque é crime”, mas não existia a ideia de pecado. Às vezes a pessoa pensa: “Ah, o cara ia para Nastrond porque era pecador”, não. Na religião nórdica, não tinha pecado, não existia a ideia de pecado, e não existia uma ideia maniqueísta de bem versus mal. Não tem. Inclusive, é só a gente pensar: quem vai para Valhalla? É o cara que mata muita gente em batalha, ou seja, são assassinos. Mas por que um assassino vai para Valhalla e o outro assassino vai para Nastrond?

Leonardo: É, aí acho que passa muito aquela ideia de que, como ele é um guerreiro, está protegendo o povo dele ou a aldeia dele ali, então ele está realmente lutando contra um inimigo; agora, o outro é um assassino que está matando o próximo. Acho que pode passar muito essa ideia.

Leandro Vilar: É, isso aí é uma interpretação que a gente faz. O guerreiro lá matando no campo de batalha, ele é um assassino que mata de forma justa, no sentido de que ele tem autorização para matar ali. Mas o outro não, o outro está sendo criminoso. Então a gente meio que interpreta dessa forma. Agora, o segundo crime que vai lá para Nastrond: o perjuro, o crime de traição, falso testemunho, mentira. Bom, os vikings prezavam muito por lealdade, principalmente nos campos político e militar. Você tinha que manter sua honra, você tinha que ser leal. Evidentemente que nem todo mundo era assim, então, segundo o Nastrond, aqueles que foram desleais, mentirosos, que traíram os seus senhores ou traíram os juramentos iam para lá. Por que eles iriam? A fonte também não diz, mas a gente sabe que legalmente isso acarretava problema. O cara que descumprisse de alguma forma, dependendo da gravidade do perjuro, da mentira que ele cometeu, havia várias formas de punição: o cara poderia ser morto como traidor, ou ele poderia pagar uma indenização, ou ser banido, ou perder algum privilégio, enfim. Mas por que ele iria para Nastrond, a gente não sabe.

Leonardo: Não tem a questão do pecado, mas ambos aí são crimes, então estão relacionados ao conceito de crime.

Leandro Vilar: São crimes.

Juliano Yamada: Algo interessante é que, para ver, já é considerado um crime se você não dá a chance de defesa para a pessoa. Eles olham muito mais isso do que o crime em si. Se você matou de forma covarde, você não deu uma chance para a outra pessoa entrar em combate com você e se defender, provavelmente um julgamento dos deuses, então o crime é muito mais agravante.

Leandro Vilar: Sim, existem algumas menções que ele diz que você matar a outra pessoa sem dar o direito de defesa ou matá-la de forma desleal era visto como um ato covarde, por isso que às vezes é entendido como crime. O teu comentário é bem pertinente nesse ponto. O terceiro crime lá em Nastrond – lembrando que é o crime do assédio a mulheres, é o cara que estava dando em cima da mulher do outro e morreu e foi para Nastrond. Lembrando que, no Völuspá, isso é dito. Na versão do Snorri, lá na Edda em Prosa, ele não cita isso. Aqui a gente tem um problema: pelo que a gente conhece das leis lá da sociedade dos vikings – eu estou falando viking de forma genérica mesmo – não existe nenhuma punição para o cara que dava em cima da mulher do outro. O próprio conceito de assédio que a gente usa hoje em dia… provavelmente a gente não sabe se existiria naquela época. Existiria o quê? Estupro – estupro realmente era crime, era punido como crime. O adultério não seria crime, mas ele poderia motivar o divórcio. Se um homem descobrisse que a sua esposa o traiu, ele poderia pedir divórcio, e se a mulher descobrisse que o marido a traiu, se ela se sentisse ofendida, ela poderia pedir divórcio.

Leonardo: Aí, no caso, era igual para ambos os gêneros, tanto o marido quanto a mulher?

Leandro Vilar: Era igual, é. Inclusive, tem até um caso curioso, que o homem também poderia pedir divórcio se a mulher fosse infértil. Ele dizia: “Olha, a minha esposa é infértil, não está gerando filhos. Eu vou me divorciar para casar com uma que me dê filhos”, mas a culpa poderia ser dele, ele que poderia ser infértil. E o contrário também acontecia, a mulher, dependendo da condição social dela, poderia alegar: “Olha, o meu marido é infértil, ele não está dando filhos”, eu posso recomendar, sugerir o divórcio. Mas isso aqui a gente tem que pensar que geralmente são as mulheres de famílias mais abastadas. Se for uma mulher lá do povão, não tem direito a esse negócio, não. Não, a mulher camponesa até poderia pedir o divórcio, mas depende do pretexto. Mas sobre a questão do assédio: por que esse crime seria punido em Nastrond? Tem alguns que sugerem que isso seria uma influência cristã, vão dizer: “Ah, cometer assassinato de forma injusta, a gente entende, que existia lá nas leis deles; ser mentiroso, traidor, trapaceiro, a gente também entende; mas dar em cima da mulher do outro seria crime tão grave ao ponto…”, a gente lembra lá dos dez mandamentos: não cobiçarás a mulher do próximo. Aí tem alguns autores que interpretam a partir disso: “Deve ter sido influência cristã”. Só que aí tem um trabalho de um autor e tem uma fonte que me levaram a repensar essa questão, é o que eu vou citar para vocês. Tem um autor chamado (inint) [01:16:22] que diz que os crimes punidos em Nastrond não seriam crimes influenciados por contexto cristão, por quê? Aí ele cita: para ele, esses crimes viriam de outras influências mitológicas, e ele cita Loki – vamos falar de Loki novamente. Aí ele dá o exemplo de quê? Lokasenna, que é o poema que eu citei para vocês lá anteriormente, que vai ter um banquete dos deuses, o Aegir está lá presidindo o banquete e o Loki vai entrar em discórdia. Aí o que o (inint) [01:16:53] diz? Nesse banquete, o Loki mata um dos escravos do Aegir, ele comete perjuro, porque ele mente, ele difama, e ele também comete assédio, porque ele insulta as deusas e diz que teve caso com elas. Ele diz: “Ah, Sif, você que é a esposa do Thor, você não se lembra daquela vez que eu fui com você lá para a cama?”, ele diz isso na cara de pau. Claro que o Thor não estava presente aí. E é até curioso que, quando o Thor chega lá na história, o Thor diz: “O que está acontecendo aqui?”, aí uma das deusas diz: “Ah, o Loki está ofendendo todo mundo aqui”, aí o Thor olha para Loki e diz: “Desculpe-se, senão eu arranco a sua cabeça”. Porque o Thor do mito é curto e grosso, não é o Thor lá da Marvel, que é cavalheiresco. Pelo menos o Thor dos quadrinhos. Mas o do mito não, ele é curto e grosso: “Desculpe-se, senão eu corto a sua cabeça”. Só que o Loki não se desculpa e dá o fora, aí o Thor vai atrás dele. Bom, nesse poema aqui, que é bem engraçado, os três crimes que a gente vê em Nastrond, o Loki comete: ele matou, ele cometeu perjuro e ele ainda cometeu assédio, porque ele diz que ofendeu as deusas, que são a Freya, a Sif, a Gefjon e a Frigga, que é a esposa de Odin, e ele ainda disse que teve caso com quase todas as deusas ali. E o curioso é que o Loki é tão safado que ele ainda chama a Freya de puta e diz que ela tinha caso com todos os deuses, ele ainda disse que a Skadi traiu o marido. Ele sai esculhambando todo mundo. Bom, aí o (inint) [01:18:25] diz: “Ora, se no poema do Loki tem esses, entre aspas, crimes, por que Nastrond seria uma influência cristã, se são compatíveis?”. Bom, mas isso aí é hipótese dele, aí eu estou citando aqui. Aí, finalmente, eu encontrei uma outra referência que me deixou de queixo caído: ano passado, eu estava lendo a Saga dos Volsungos, que é uma saga bem famosa. A Saga dos Volsungos fala sobre a dinastia dos Volsungos, mas foca em Sigurd, que é o mais famoso dos Volsungos, que era um grande herói, um grande guerreiro, matou um dragão. Ele também… digamos que ele teve um relacionamento com uma valquíria, que é a Brunhilda. O curioso é que, quando ele conhece a Brunhilda, ele está conversando com ela, aí ele diz: “Não, você é uma mulher muito bonita, você é muito inteligente e sábia”, aí ele diz: “Que conselhos você pode me dar?”. A Brunhilda dá vários conselhos para Sigurd, e ela diz: “Um conselho: não arranje brigas e evite cometer assassinatos; segundo conselho: mantenha-se leal, nunca falte com a sua palavra”, ou seja, não seja traidor, não seja mentiroso, não seja perjuro. Finalmente, ela diz: “Jamais dê em cima de mulheres casadas”. Aí eu li: “Caraca, doido. O que ela falou aqui combina tudo com Nastrond”, e são relatos mais ou menos do mesmo século, é datado do século 13. Aí você diz: “Teria alguma…”…

Leonardo: E aí são os três elementos, não é?
Leandro Vilar: Os três elementos.

Leonardo: Não é que foi falando vários e aí estavam esses… não, tanto no do Loki quanto nesse dela, está falando os três elementos aí, legal.

Leandro Vilar: Os três elementos. Claro que a Brunhilda cita outros conselhos também, ela fala: “Ah, você tem que ter cuidado, procure cuidar da sua saúde; não confie em estranhos”, esses negócios. Mas esses três me chamaram a atenção, porque combinam com os crimes lá em Nastrond. Por que eu estou citando isso? Porque é mais uma evidência de que talvez aqueles crimes de Nastrond não sejam uma invenção cristã. Eles talvez já existissem entre os mitos nórdicos e alguém saiu colhendo isso aqui e surgiu o mito.

Leonardo: Fiquei agora com uma dúvida. Essas outras fontes servem para mostrar: isso aí pode não ter sido necessariamente uma influência cristã, porque encontra da Brunhilda e do Loki, mas de repente da Brunhilda e do Loki também não poderia ter tido influência cristã? Não sei, pela questão da época, assim?

Leandro Vilar: É difícil encontrar, porque, por exemplo, a Saga dos Volsungos, o Lokasenna e as os relatos de Nastrond mais ou menos datam de questão escrita, século 13, mais ou menos esse período aí, 1200 e pouco. A gente não sabe quem veio primeiro, não tem como noticiar isso. Além do mais, tem que pensar que esses mitos já existiam antes, existiam na tradição oral e, em dado, em determinado momento, alguém escreveu e chegou às versões que a gente conhece. É difícil encontrar influência cristã. Por exemplo, no Lokasenna você não encontra nenhum elemento que sugere influência cristã. Aí você diz: “Ah, mas naquele poema lá o Loki está debochando dos deuses”, tudo bem, ele está debochando, mas na própria mitologia grega você tem deboche dos deuses e não quer dizer que o cristianismo estava lá influenciado. E, no caso da Saga dos Volsungos, também não tem nenhum relato que sugere influência cristã, diferente do Beowulf. Tudo bem que o Beowulf aqui não faz parte da história, mas eu estou citando-o porque o Beowulf tem influência cristã. Inclusive, em vários momentos tem personagem cristão na história, só que, quando a gente vê o filme do Beowulf ou o desenho, a gente não nota isso, mas, quando a gente lê o poema, tem lá: “Ah, o cara está orando para Jesus, o outro pediu para deus”. O Beowulf, não. O Beowulf é pagão, mas tem personagem cristão na história dele.

Leonardo: É, interessante. Então isso do Nastrond… então mais elementos para sugerir que realmente era dessa forma, que não teve tanta mudança em si a nível de referências cristãs. Legal. Porque isso era uma dúvida realmente que eu tinha, que eu fui vendo ali: “Ué, será que é mesmo? Será que veio depois?”, que já é algo que para nós também seria um crime, nós que temos a cultura vinda do cristianismo teríamos como crime e como pecado.

Leandro Vilar: Mas tem que pensar que, em várias sociedades, você cometer assassinato, ser desleal, traidor, mentiroso, é algo ruim.

Leonardo: Tem a sua lógica que também seja crime.

Leandro Vilar: Você ficar cometendo adultério, dando em cima dos parceiros dos outros também é algo ruim. Então a gente tem que pensar que tem que se pegar um pouquinho da lógica.

[Trilha sonora]

Leonardo: Se quiser fazer mais alguma consideração final aí, algum link que você queira deixar, algum contato, fique à vontade.

Leandro Vilar: Por questão de curiosidade: Nastrond, se não me engano, é o nome de uma banda. Deixe-me até confirmar aqui.

Leonardo: Bom, coisa de origem nórdica, se duvidar (deve ser) [01:23:25] banda.

Leandro Vilar: É, eu acho que deve ser alguma coisa de viking metal. Eu nunca ouvi música deles, mas, quem quiser procurar aí, só por curiosidade, pode conferir. E também existe… lá na Wikipédia tem uma gravura de um… não sei se é um pintor dinamarquês, norueguês, que é o Frølich, que ele tenta retratar como era Nastrond, os caras dentro do veneno lá com as cobras em cima, no telhado. É curiosidade. Por fim, eu quero agradecer ao Leonardo e ao Yamada pelo convite de falar aqui. Foi uma conversa bem extensa inclusive, acabei… eu acho que… não sei se eu falei demais, até porque o conteúdo também era grande, falar de todos esses mundos dos mortos. Só de falar em Valhalla… dava para ficar aqui várias horas falando só de Valhalla.

Leonardo: E eu gostei de ter rendido bastante aí, porque era um elemento mínimo, a gente foi falando de diversos mundos dos mortos e, como a gente falou desde o começo, Valhalla e Hel são os que mais têm conteúdo, e a gente pegou um ali que tem umas passagens pequenas, mas que eu acho bem interessante falar disso, porque muito ouvinte aqui nunca tinha ouvido falar do Nastrond. Então eu acho legal mostrar isso para mais conhecimento. Ir além de Valhalla e de Hel, que tem outros mundos e tem esse Nastrond, que chama muito a atenção. E legal de ter conseguido render bastante.

Leandro Vilar: Agradeço. E os links, eu vou pedir para deixar aqui na página mesmo. Tem o meu artigo, que são 30 páginas de comentários só sobre Nastrond, quem quiser ler lá pode ler muita coisa. Inclusive tem a parte que eu analiso até a simbologia dos animais. Convido todo mundo, quem quiser, curtir a página do NEVE, tem o blog. Temos também duas páginas do NEVE no Facebook, vocês podem ver. Inclusive, atualmente a professora Luciana está fazendo vídeos contando narrativas folclóricas escandinavas, vai até o dia acho que sete de maio. É só entrar lá na página do NEVE que ela tem lá todas as narrativas. Hoje, ela falou sobre a Suécia; ontem, foi Noruega, Dinamarca. Aí quem curte folclore escandinavo ou tem curiosidade pode conferir lá na nossa página. Tem o blog também do NEVE, tem o meu blog também, que é Seguindo os Passos da História – digita no Google que encontra. Tem matéria sobre mitologia nórdica lá no meu blog, vocês podem procurar. E, de resto, eu agradeço e, quem quiser entrar em contato, vai estar lá no link o meu e-mail e o meu Instagram também, se vocês quiserem seguir. Obrigado.

[Trilha sonora]

[01:26:54]

(FIM)