Sobre a Mitologia Inuit e Sedna

Por Daniel Silva

O círculo polar ártico é uma terra inóspita e impossível de cultivar, o povo vive da caça dos animais nativos, como focas e peixes, para sobreviver, ou da limitada fauna terrestre, como a de ursos e, até mesmo, cães.

Sua mitologia é profundamente animista, ligada aos espíritos da natureza, o que não é de se espantar, os animais marinhos desempenham uma função importante na mitologia, como espíritos. Para contatar esses espíritos surge a figura do xamã, que seria uma mistura de médico/sacerdote/mágico, que conhece todos os segredos do mundo dos espíritos. Em sociedades muito ligadas a natureza, a figura do xamã, apesar de diferenciada, apresenta notáveis semelhanças. Assim, o Pajé das tribos brasileiras e um xamã Inuit podem ser muito similares.

A caça é antes de tudo um ser que permite que a humanidade sobreviva, e como tal é digna de homenagens e respeito. Se isso não ocorrer, pode vir a faltar, no futuro. A comunicação espiritual pode ser realizada de muitas formas, seja indo a locais determinados, como ilhas ou zonas de caça, ou certos postes e fogueiras que são sagrados. Um objeto comum a esses xamãs seriam suas bolsas de pele de foca, ou suas máscaras de madeira representando os espíritos, chamadas inuas, que representam o espírito de algo: rochas, animais, plantas, etc. Todo o viajante deve fazer homenagens diante de uma inua.

Há muitas histórias envolvendo esses seres. Em uma delas, uma mulher de um caçador tem um caso com um Urso Polar. O marido sentiu o cheiro de urso em seu iglu, e fez a mulher confessar o malfeito, descobrindo onde o urso morava. Quando o caçador apareceu, o animal escapou, e irritado, decidiu punir a mulher, destruindo o iglu com ela lá dentro. No meio do caminho, já mais calmo, mudou de ideia, perdoou a mulher e empreendeu uma busca pelo verdadeiro amor.

Outra história curiosa, da Sibéria, é sobre a orca Akhlut, um dos espíritos mais terríveis espíritos. Ela costuma se metamorfosear em lobo, e, com essa aparência, vaga pela região, matando e devorando pessoas e animais. Depois de saciar sua fome e sede de sangue, ela retorna ao mar e a forma de baleia orca, e quando vêem pegadas de lobo, os inuits sabem que Akhlut andou caçando.

Orca

Certos fenômenos típicos da região despertam um forte interesse, como a bela e misteriosa aurora boreal. Uns dizem que são os espíritos dos mortos dançando, outros, geralmente caçadores, acham que é o Homem das Luzes polares atirando flechas, para anunciar que a caça está chegando.

Também a lua é venerada, como Igaluk, um ser masculino. Conta-se que, uma vez humano, dormiu, sem desejar, com sua irmã. Ao acordarem e ver o que fizeram, ambos sentiram vergonha, e decidiram deixar a terra, e não mais se verem, ele converteu-se na lua, ela, no sol. Igaluk é geralmente representado em pequenas esculturas de madeira, com penas para representar as estrelas, madeira clara para o ar, e madeira mais escura para a face da lua. É uma divindade que zela pelos humanos, controlando as marés e as estações do ano. É também conhecido como Homem da Lua.

De todos os espíritos, há um que merece um certo destaque, pela veneração que o povo da região lhe destina, como pela história, um tanto quanto análoga a do Homem da Lua: é a Mulher do Mar, a Mãe de Todos os Animais Marinhos, Sedna.

Sedna01

Sedna teria sido uma mulher humana de grande beleza que vivia sozinha, enfrentando muitas dificuldades para se manter. Apesar dos muitos pretendentes que a desejavam como esposa, e que poderiam dar a ela uma vida melhor, ela não desejava casar-se por alguém que não amasse. Por isso, todos eram rejeitados. Mas o amor veio a chegar no coração de Sedna, e ala apaixonou-se por um cão!

Isso desagradou ao povo, principalmente aos rejeitados, que disseram que isso traria azar, e não era natural. Eles, então, levaram-na para uma canoa, e, no mar, empurraram a jovem. Ela segurou-se na borda da embarcação, mas os jovens, cruelmente, cortaram fora os dedos da jovem.

O prodígio foi que, quando os dedos caíram no mar, eles transmutaram-se em animais marinhos, como focas e leões do mar. Sedna chegou ao fundo do mar e converteu-se em deusa dos animais marinhos, assim como em deusa de fúria, devido ao tratamento que lhe foi impingido. É adorada, pois se de bom humor fornece os alimentos, mas se desrespeitada ela guarda rancor, e prende os animais marinhos no fundo do mar, para que a humanidade morra de fome.

Os pecados e tolices da humanidade se juntam à sujeira nos longos cabelos lodosos de Sedna, que ela não pode pentear nem fazer tranças porque não é dotada de dedos. O xamã devem, portanto, mergulhar até a morada de Sedna, no mais profundo do mar, e passar por vários animais guardiões, como baleias e leões marinhos, e um enorme cão preto.

Só depois de passar por esses animais é que ele chega a Mulher do Mar. Nesse caso, para aplacar sua ira, ele deve pentear os grossos cabelos dela, limpando e desembaraçando as mechas, arrumando-as em duas grossas tranças. Grata a isso, Sedna deixa que os pecados afundem no mar, e solta os animais para que o povo não morra de fome.

É natural uma associação de Sedna com seres marinhos de outras mitologias, como as sereias. Porém essa semelhança é de natureza muito superficial, pois lá elas são danosas à humanidade, além de nativas do mar, Sedna é uma divindade fundamentalmente boa, ainda que até certo ponto rancorosa, e não é nativa do mar, mas do meio dos homens. A metáfora de transcender as dificuldades, como fazem a mulher do mar e o homem da lua podem ser identificadas com a de transcender o ambiente hostil em que vivem os esquimós.

2 comentários em “Sobre a Mitologia Inuit e Sedna”

  1. Incrível! Eu nunca imaginei que existisse uma mitologia esquimó. Agora vejo o quanto especialistas em mitologia vocês são.

    1. Valeu Augusto! Agradeça ao Lucas Ferraz, muitos desses posts são graças a ele e seu antigo site Templo do Conhecimento. Quanto aos esquimós, existe até mesmo um planeta batizado como Sedna, em referencia a deusa deles. Você também pode encontrar como mitologia Inuit.

Comentários encerrados.